Um artigo de Peter Hallward ("The Guardian", 14/1/2010) vem retirar a tragédia do Haiti do simples domínio telúrico e apresentá-la, concomitantemente, como a consequência dum fenómeno sobretudo político: o do imperialismo.
A essa luz, para além do acto humanitário, os esforços da "comunidade internacional" parecem-se muito com a reparação dum crime em que muitos países se encontram comprometidos e, por outro lado, na medida em que não se reconhecem os efeitos da devastação económica e social provocada pelas mesmas potências que ampliou a catástrofe natural, não se pode deixar de falar em hipocrisia.
Hallward diz que não é por acaso que uma tão grande extensão de Port-au-Prince parece uma zona de guerra e fala dum deliberado empobrecimento e desempoderamento (disempowerment), consequência do "sistema de exploração colonial talvez mais brutal da história do mundo". Teria começado com a invasão e ocupação de 1915 pelos EUA e o sequente bloqueio de qualquer veleidade de passar "da absoluta miséria para uma pobreza digna" (Jean-Bertrand Aristide). "Décadas de 'ajustamento' neo-liberal e a intervenção neo-imperial roubaram ao seu governo qualquer capacidade de investir no seu próprio povo e de regular a sua economia." O "desígnio" de criar uma força de trabalho explorável nas cidades, empurrou os pequenos agricultores para os bairros de lata suburbanos já sobrepovoados. "Estas pessoas, por definição, não se podem dar ao luxo de construir casas resistentes aos terramotos."
Perante a enormidade dos factos, parece que a questão dos termos perde muito da sua importância. Mas quem pode dizer que um erro de juízo não resulta muitas vezes duma linguagem, deliberadamente ou não, inapropriada? Erros que podem estar na origem da derrocada de mais de um império…
Assim, é este um exemplo do imperialismo, último estádio do capitalismo, tal como o definiu Lenine, ou precisamos dum outro conceito para definir uma outra realidade?
Não há dúvida que o imperialismo no sentido leninista nada tem a ver com um império de facto, como foi o de Roma. Não existe uma administração central e, tirando os teatros de guerra, não se pode falar em ocupação militar (em que medida a base das Lages influencia a nossa política?).
Qual é, por outro lado, o peso que os casos de "neo-colonialismo", como o haitiano, representam na economia dos EUA (Segundo T.Harford: "The Undercover Economist", em 2000, as importações americanas dos países menos desenvolvidos representavam apenas 0,6% do total e para o investimento a história era a mesma, isto é o "imperialismo" explora-se, sobretudo, a si mesmo), quando o domínio económico se faz preferentemente através da penetração cultural, adaptando o mercado local aos interesses americanos, em vez de utilizar os manípulos e as legiões? A liberdade do comércio, que geralmente facilita as outras liberdades (mas não necessariamente) é indispensável para este tipo de influência.
Parece, pois, que se impõe aqui a noção gramsciana de hegemonia, em vez de falarmos esconjuradamente em imperialismo. A hegemonia dá conta do poder efectivo sobre a economia e, indirectamente, sobre a política, sem que tenhamos de recorrer a uma ideia da gestão dos interesses americanos (que aqui, bem entendido, seriam o protótipo do imperialismo) que, num mundo globalizado, parece cada vez mais anacrónica e pressupõe uma estrutura do poder simplificada com expressão directa da força. Não, não é desse modo que os Americanos "levam a água ao seu moinho".
A catástrofe do Haiti vem demonstrar, e aceitando a tese de Hallward, que como imperialista o sistema de dominação foi não só incompetente, desarticulado e, no final, contraproducente, se pusermos de lado, evidentemente, a moral (que consabidamente não tem). O predomínio selvagem dos interesses, num campo onde não há lei nem ordem, como é o campo internacional, é suficiente para explicar o que sucedeu e fazer vislumbrar um princípio de solução, onde o imperialismo não no-lo permitiria.
No entanto, é claro o rendimento ideológico dum conceito como o de imperialismo. Ele possibilita o hipostasiar da coerência e do poder dum sistema imaginário que tornariam dispensável qualquer análise crítica de acontecimentos tão significativos e tão inexplicáveis sem essa "blindagem" como foi o da implosão da URSS.
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