01/12/09
IL DIVO
Giulio Andreotti, à frente do partido da Democracia Cristã, sete vezes no governo da Itália, até o escândalo da "Tangentopolis" e do envolvimento da Máfia, condenado pela Justiça e mais tarde absolvido pelo Supremo. Conhecido por Belzebu, o Corcunda, a Raposa ou o Divo. Hoje, senador vitalício por nomeação presidencial.
Magistralmente interpretado por Toni Servillo, no filme de Paolo Sorrentino, "Il Divo", diz logo no início que "tirando as guerras púnicas, foi acusado de tudo em Itália", mas nunca se defendeu porque tem sentido de humor.
Lívia, a mulher, companheira de tantos anos, no fim de contas não conhece a esfinge melhor do que os outros. Um dia decide interromper o seu apoio e tentar criticá-lo por "sentir a necessidade de dizer a verdade". Resposta: "quem não tem necessidades, vive mais tempo".
O que se passa na cabeça deste Maquiavel tão seguro de si próprio que a necessidade de ser verdadeiro nunca se lhe impõe?
Um jornalista, velho conhecimento, confronta-o com uma série de circunstâncias que o incriminam e não podem ser o produto do simples acaso. Andreotti também não acredita no acaso. Acredita na vontade de Deus. Este argumento (foi por acaso que…?) é sempre simplista da parte de quem julga saber. E a Raposa lembra-lhe que foi ele quem salvou o jornal de cair nas mãos de Berlusconi (já ele). O outro retorque que as coisas foram um pouco mais complicadas do que isso: - "Pois é. Mas esse argumento também se aplica no meu caso. Foi mais complicado do que isso".
Tem remorsos este homem que acusam de ter deixado assassinar o amigo Aldo Moro? Parece que isso, pelo menos, o impede de dormir. Mas foi necessário. A "estratégia de tensão", com a manipulação do terror, foi necessária para formar um grande partido ao centro que salvasse a Itália da anarquia ou do comunismo.
Como se veio a revelar à luz do dia, o regime estava corrompido até às entranhas e a DC não escapou ao seu destino. Mas este político excepcional tinha a doutrina (da vontade de Deus) e o sangue frio necessários para administrar o monstro, e fê-lo com mestria durante os 44 anos que o seu partido esteve no poder. Andreotti foi a cabeça de que esse corpo corrupto precisava. Nenhuma outra faria "melhor". Foi preciso uma ideia exterior ao regime (a que está por detrás da "Operação Mãos Limpas") para lhe pôr fim.
A vontade de Deus é sempre a justificação do status quo. Andreotti tinha razão em reclamar-se dela. Por isso, como diz George Bataille, "Deus é pior ou está para além do mal. É a inocência do mal."
IMPÉRIOS
Diana Bar (http://mw2.google.com/mw-panoramio)
Era uma tarde de sábado como tantas outras vividas entre silêncios e solidões rodeadas de gente. O Diana Bar albergava-me as leituras e naquele fim de dia os ares do Outono sopravam cânticos com as suas nostalgias espalhadas nas águas mansas e acinzentadas do oceano enquanto sobre a areia gaivotas paradas admiravam em espanto o atrevimento das pombas que lhes sobrevoavam o espaço ao mesmo tempo que alargavam as asas prontas a descolar em novas descobertas. A placidez do olhar ajustava-se a um cenário que se desenhava entre o romantismo das ideias e os encontros marcados com o impossível. Quando a orquestra ligeira começou a tocar quis acreditar que os seus sons me levariam a embarcar nas caravelas que os meus olhos criaram no horizonte prateado entre o mar e o céu e que tinham como destino o infinito do tempo. Preparado estava para tão longa aventura e quando os primeiros toques chegaram até mim, acreditei que voava nas asas das aves marinhas que na praia iniciaram o seu voo. Contudo, o pensamento voou de facto, mas até à memória, e desta para a história, esse passado longínquo dos Homens no tempo. Era na verdade um fim de tarde de um dia longo e o mar estendia-se ao longe como um poema cantado em glória da humanidade, mas este velho Café não existia, antes apareciam os meus olhos escondidos e protegidos pelas pedras acasteladas da Cividade. Corria o ano cento e trinta e sete antes da história iniciar uma nova contagem do tempo e ao longe na planície que conduzia ao oceano as romanas legiões apressavam o passo para o assalto mortal à aldeia. Em breve, a liberdade iria voar pelo céu azul, prisioneira e cativa do império.
A dupla cortina de muralhas onde julgavam repousar a sua tranquilidade nessa vivência diária de uma estabilidade com breves sobressaltos, parece agora vacilar com o som das notícias que chegam do sul. Viriato perecera nesse momento ignóbil de que a história nos deixou ecos e Roma, enviara um dos seus cônsules, Decimus Junius Brutus para de vez fazer dos galaicos um povo sem identidade. Ocupada Olissipo, dirigiu-se para norte, desprezando a guerrilha lusitana e passando a ferro e fogo os povoados que encontrara. Atravessaram o Durius junto a Portus, dirigem-se ainda mais para norte e os ecos da sua marcha chegam já ao interior do pequeno povoado encastelado sobre o mar. A vida agita-se e apressa-se no âmago das pequenas ruas e vão chegando os que no exterior labutavam. Olhos ansiosos e temerosos espreitam agora pelas frestas nessa angústia de um fim previsível. No dealbar do dia, percebe-se o movimento na planície, observam-se os estandartes e a cor púrpura dos panos. Uma imensa massa guerreira alinha-se em direcção a nascente. A noite não conheceu luar. O símbolo branco do universo escondeu-se no temor das horas que se avizinhavam. A luminosidade do dia surgiu nesse romper diário por trás da pequena montanha e quando se elevou estendeu os seus braços pela planície, esmagou a alma dos homens que tentavam perceber o seu destino. A extensão oceânica, nessa beleza que deslumbra os seres humanos aparecia ofuscada pelo corpo legionário que se aprestava para o assalto.
A poderosa máquina de guerra da civilizada Roma, moveu-se e o silêncio que até ali abafava a voz dos homens, desapareceu, entre os gritos, o desespero, a morte e os berros guerreiros. A resistência durou escassas horas. Derrubada a pedra das muralhas, invadidas as casas, saqueada a aldeia, alinhados os cativos, o exército imperial apronta-se para prosseguir a sua missão de conquista para norte, ainda mais para norte.
Adivinha-se ao longe o crepúsculo. O silêncio como uma ave ferida, sobrevoa o pequeno lugar, as chamas que ainda se elevam fazem tremer o olhar de quem procura à distância o azul profundo do mar nessa amplitude imensa que nos lembra o caminho da humanidade.
O crepitar do fogo na destruição do que resta, acorda-nos os sentidos enquanto vagueamos entre os destroços na tentativa de percepcionarmos a história. Corria o ano de cento e trinta e sete antes de recomeçarmos a contagem do tempo. A civilizada e grandiosa Roma tinha passado sobre a Cividade de Terroso e tal como os outros civilizados impérios que lhe seguiram, deixou a sua marca de terror e destruição sobre os povos que lhe sustentaram o corpo.