Gosto muito da tua pequena cidade. Tem história, ruas estreitas e aquelas pedras seculares que guardam a passagem dos Homens pelo tempo, e o rio, lento apesar da proximidade do mar, com os seus estaleiros marginais onde juntavam madeira trabalhada que projectavam na imensidade do oceano na procura da aventura, do novo, da descoberta, e ainda aquele soberbo mosteiro, altaneiro sobre a margem direita, dominador do espaço e dos povos envolventes. Apesar desse fascínio não parei, segui para norte na peugada dos teus passos e por aí me instalei. Também tu o fazias nas manhãs certas da tua permanência. Tinhas mesa reservada naquele Café tão emblemático. Protegido pela coluna, escrevias e deleitavas o olhar pelo horizonte oceânico na procura de inspiração que te ajudasse a construir as palavras que tinhas para nos legar. Esse espaço acabou depois de teres partido e nos teres deixado neste vazio. Agora já não nos trazem café, é antes um espaço de cultura, bem, diria mais, de leitura. Mas reservaram-te a mesa. Mantêm-na como se, todos os dias, chegasses e prosseguisses o teu labor. Têm lá o teu nome e a tua fotografia e deixaram a chávena do café para que não se atrevam a ocupar o teu lugar. Afinal, quem o poderia fazer? Bem, outro dia, fizeram-no. Um desses leitores de Verão. Sentou-se e queria deslocar a tua chávena de café, o tolo. Sento-me por ali, próximo, para poder conversar contigo, trocar ideias com os teus poemas. Deitei-lhe um olhar severo, mas não reagiu, manteve-se sentado com o seu jornal desportivo aberto. É certamente um desses muito democratas que andam por aí, e votam, democraticamente como é natural e legítimo, e assim tudo vai ficando como dever ser. No teu tempo não haviam democratas destes, nem dos outros, sim desses que te venho falar, mas fica entre nós, como todos estes diálogos que aqui temos no intervalo da minha leitura e da tua escrita. Sabes que vivo com o teu "Cântico Negro", já to disse. Ajuda-me a encontrar caminhos, sobretudo quando tropeço na estrada com seráficos democratas que me sorriem ao mesmo tempo que me dizem, "com olhos doces,/estendendo-me os braços, e seguros/de que seria bom se eu os ouvisse/quando me dizem: "vem por aqui"!" Pedi-te conselho uma vez, recordas? E olhamos o mundo, de ontem, de hoje e, sobretudo, o de amanhã, o que desejamos, e sabemos que chegará, pese embora, os caminhos escuros e as agruras das esquinas, pelo que não os contesto, olho-os "com olhos lassos", "cruzo os braços", e simplesmente "nunca vou por ali…". Não compreendem que arrastados para os seus medos, os seus fantasmas nocturnos, perdidos nas suas teorias estreitas deixaram de perceber os contornos das grandes avenidas do futuro, só vislumbram atalhos estreitos e rendem-se ao conforto de um banco acolchoado de jardim. Ao longe, acenam-me, dolentes, na preguiça de prosseguir uma caminhada com percurso de estafeta. Chamam-me, escondem a voz entre a concha das mãos e dizem-me "vem por aqui". Sorrio pela sua insistência e digo-lhes que o meu tempo é continuar. "Prefiro escorregar nos becos lamacentos, /redemoinhar aos ventos,/como farrapos, arrastar os pés sangrentos,/a ir por aí…". Suspenderam a viagem da vida, confortam-se uns aos outros nessa imobilidade temporal e crêem que a História parou com a sua própria vontade, cegos e surdos a um movimento que prossegue na procura do novo e do desconhecido. Insistem em cada dia no seu chamamento sedutor, repetindo para consolo próprio, "vem por aqui"! Só lhes posso responder com as tuas palavras, pois tal como tu, também a mim só "Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém" E digo-lhes "Ide! tendes estradas,/tendes jardins, tendes canteiros,/tendes pátrias, tendes tectos,/ e tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios./Eu tenho a minha loucura!", os meus sonhos, se quiserdes as minhas utopias, minhas e da Humanidade que me projecta que me agarra nesse ancestral sonho de liberdade, de justiça, de dignidade e vós acenais-me a ficar parado na dolência da servidão que se aloja no pensamento dos homens derrotados nas suas ideias. Mas não, não é possível. Em vós corre "sangue velho dos avós,/e vós amais o que é fácil!" Por mim, "amo o Longe e a Miragem,/amo os abismos, as torrentes, os desertos…". Ah, meu poeta, meu escritor de Deus e dos Homens, lembro-me de ti quando me acenam e resisto, brinco com a proposta e lembro-me do outro poeta, transmontano, "a honra era lutar" e creio que pretendem de mim essa desonra de me acolher aos salões aquecidos dos ladrões. Ouço-os naquela calma de quem sabe que tem tempo de chegar e conhece o destino do seu voo e, repito-lhes as palavras de Galileo, Galilei ditas pelo poeta, outro:
"E tu foste dizendo a tudo que sim, que sim senhor, que era tudo
tal qual conforme suas eminências desejavam,
e dirias que o Sol era quadrado e a lua pentagonal
e que os astros bailavam e entoavam
à meia-noite louvores à harmonia universal"
É o que lhes vou contando para conforto das suas almas democraticamente perdidas, mas na verdade aos seus repetidos apelos escutam de mim apenas essas palavras que dizem "A minha vida é um vendaval que se soltou/É uma onda que se alevantou/É um átomo a mais que se animou…" e "sei que não vou por aí".
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