Marques da Silva
Tenho sempre dificuldade em compreender os acasos, as circunstâncias, aparentemente aleatórias que fazem coincidir num mesmo local ou numa mesma hora, aspectos ou actos cujo destino ou trajectória se desconhecem que evoluem de forma distinta e, no entanto aparecem como se emergissem de um estado invisível e se encontram no mesmo espaço de tempo e lugar. Terá sido essa incompreensão que me fez imobilizar naquela tarde, sensivelmente a meio daquela longa recta. A tarde começava o seu tempo de descida para a noite e quando me apercebi da extensão rectilínea da estrada, da paisagem verdejante das margens e das montanhas entre névoas desenhando-se num fundo afastado, decidi que havia de parar e usufruir por instantes da placidez daquele vale planáltico. Foi quando me aconchegava num espaço onde não perturbasse que o meu olhar se deteve e hesitei por momentos, perante o acaso que era ver-te ali, aparentemente na fruição do que me fazia parar. Se tive dúvidas no primeiro momento, logo se desvaneceram, pois a tua figura sempre foi ímpar aos meus olhos. O que nos teria feito encontrar naquele lugar tão distante e remoto logo me levou para essa incompreensão do acaso. Descias para Erevan, haverias de dizer depois e há algum tempo que te deliciavas com a quase ausência de sons que se sentia por ali. Regressava de Persépolis quando ali cheguei e te vi. Sim, de novo, pela terceira vez. Sempre me seduziu a cidade dos persas. Não gosto de Alexandre. Reconheço o mérito militar do macedónio, estratega e líder, percorreu todo aquele espaço desde a Anatólia até aos confins do Afeganistão e da Ásia Central. Sim, fundou cidades, as quais entregou a muitos dos que o seguiram. Mas não parou, não sedimentou sociedades, culturas, algo que evoluísse de forma coerente e contínua. A sua Macedónia quase se esqueceu dele e hoje sobrevive como ideia territorial entre outros povos, línguas e culturas e quase sem espaço seu. Pelo contrário, os persas nunca perderam o rumo, prosseguiram para além de Alexandre, de quem, nem o local tumular conhecemos. Persépolis, a cidade de Dario que me fascina, continua na terra persa e em cada momento de contemplação sentimos o perfume da história a estender-se pela vastidão da terra dos Aqueménidas. As colunas dos palácios e a grandeza de Persépolis resistiram e vivem para além da barbárie dos militares de Alexandre. Regressei pelo lago Van depois de atravessar a terra curda e desejo transpor as montanhas caucásicas, sentir a leveza da vida na contemplação das neves imaculadas de silêncio e sossego. Que procuras tu em Erevan? «Fujo do ruído dos tambores. Para além de tocarem a todas as horas, rufaram em Madrid, 3 dias a todo o momento e a cada hora aumentando o volume o que levou à excitação quase lasciva daquela espécie de cavaleiros teutónicos. Já sem controlo da demência com que se banhavam, falavam de milhares. Centenas de milhares para Norte, dezenas de milhares para o Centro e assim sucessivamente. No auge da insânia reclamaram 2%». Para a Cultura? Não, para o deus Marte. Estavam lá todos, Sociais-democratas, Trabalhistas, Socialistas, cada qual tentando ser mais destemido do que o outro. E os tambores sempre a bater. No intervalo, os sátrapas divertiam-se numa feira de vaidades. Encontramo-nos no fio da navalha. As democracias coloniais sentem a impunidade do poder a escapulir-se ao fim de quatro centúrias de domínio e o espectáculo pode não ser bonito de se ver. Como escreveu a Helena Villar, “os impérios morrem, matando”». Deixamos que o silêncio nos envolvesse para que o olhar pensativo de ambos pousasse sossegadamente sobre a natureza que nos rodeava e um momento de acalmia nos protegesse dos ruídos do mundo. Habituei-me a ler na profundidade do teu olhar a intimidade da alma e enquanto te observava senti que algo te preocupava e entristecia. «Por estas terras viajou quase há oitenta anos, Annemarie Schwarzenbach» disseste tu, prosseguindo o diálogo. "Para além de tudo o que nos transmitiu do que viu e observou, deixou-nos a preocupação e ansiedade pela horda fascista que cobria já a Europa de nuvens. Todo este tempo decorrido e milhões de mortos depois, as inteligências coloniais que nos dominam abrem de novo a porta ao horror». Um espaço de tempo longo passou sem palavras e os sons da natureza era tudo o que escutávamos, até ao instante em que com a serenidade de sempre e quase num sussurro disseste, «recordas as últimas palavras do discurso de Fetiukóvitch em “Os Irmãos Karamázov”, de Dostoiévski? Parece que há povos que têm de estar sempre a repetir o que os caracteriza, o que os distingue, qual a grandeza da sua cultura, da qual não abdicam e por onde seguem carregando com fervor o peso da sua longa caminhada pela História, e não os ouvem, continuam a não querer escutá-los." Uma ligeira sombra crepuscular vagueava já pelo vale e as cores da natureza agasalhavam-se para o tempo nocturno que se aproximava. Despedimo-nos do acaso que nos fizera encontrar, mas já um pouco afastada ainda respondeste há última pergunta que te dirigi. "Vou há procura de ar livre, necessito de respirar que a Europa abafa-nos na opressão miserável que nos impõem. Ar livre, como no poema do Torga, “Ar livre, digo-vos eu! (…) De par em par, pois então?!” Vou descer o Amur da nascente mongólica até à foz no Mar de Okhotsk. Aparece".
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