Marques da Silva
Sobre os actuais egípcios repousa o peso avassalador de uma civilização milenária. A evolução da humanidade atravessou as terras do Baixo e Alto Egipto no seu caminhar histórico pelo planeta. Ali nas margens do Nilo, há cinco mil anos, tomou forma uma plêiade de reinados que ainda hoje nos surpreende pela grandeza, pelo conhecimento, pelas marcas deixadas na poeira do tempo. No decorrer dos últimos dois séculos, milhares de arqueólogos vêm levantando essa poeira e trazendo à luz do dia o esplendor dessa civilização que viveu na sombra das cheias do Nilo. A riqueza arqueológica tem revelado o fausto desses anos milenares, plenos de vida e de simbologia. Naturalmente que não há qualquer espanto na numerosa presença feminina que deixou uma marca imperecível no vigor desse espaço civilizacional. Foram várias as mulheres que se destacaram pela sua acção e presença na mais alta nobreza faraónica. Três delas, em tempos diferentes, adquiriram um papel de maior relevo e aparecem-nos hoje, como símbolos dos dias que viveram. Há três mil e quinhentos anos, nascia em Tebas a futura rainha, Hatshepsut. Foi grande esposa real, regente e rainha faraó. Filha de Tutmés I e da rainha Amósis, casou com o seu meio-irmão Tutmés II, à morte do pai. À morte do marido, torna-se regente na menoridade de Tutmés III, mas na verdade será ela a governar ao longo de 22 anos. Movendo-se com inteligência em torno dos sacerdotes de Amon, Hatshepsut deixará a sua marca na história do Antigo Egipto. A obra admirável que é o templo mortuário de Djeser-Djeseru construído durante o seu reinado e dedicado a Amon-Rá, é um indicador do quanto a sua acção marcou a terra egípcia dos faraós. O nome da sua filha, Neferuré – a beleza de Ré – conduz-nos para outras duas grandes rainhas da época faraónica, Nefertari e Nefertiti, ambas conhecidas não só pelo desempenho como esposas reais mas também pela sua extraordinária beleza. De Nefertari cujo nome significa, a mais bela, a mais perfeita, há registos de um desempenho significativo nos assuntos do Estado durante o reinado do seu marido, o grande Ramsés II. Pese embora, a arqueologia ter encontrado o seu túmulo real, a sua múmia tinha desaparecido, certamente destruída pelos ladrões que se apoderaram do tesouro que a acompanhou no seu leito de eternidade. Por coincidência, a mesma sorte terá tido a outra bela e grande rainha, Nefertiti. Juntamente com o marido, o faraó Amenófis IV, mais tarde, Aquenaton, representaram uma época de revolução na simbologia religiosa do Egipto. Após os primeiros anos do seu reinado, alteraram a adoração de vários deuses, no qual o deus Amón adquiria um papel privilegiado, para um só deus, Aton, a divindade solar. É possível que não negassem a existência dos restantes deuses, mas Aton tornou-se num culto único, o que foi suficiente para fazer irromper a ira de todo o clero que vivia do deus Amón. Nefertiti, cujo nome significa, a bela chegou, é conhecida de uma forma particular pelo busto encontrado em 1912 e que está visível no Neues Museum em Berlim e garante a esta instituição milhões de euros em visitantes, enquanto o Egipto reclama a sua posse. Apresenta um rosto fascinante e de uma beleza irrepetível. Encontrar o túmulo da rainha Nefertiti, tem sido o sonho de imensos arqueólogos. No entanto, atendendo à revolução religiosa que protagonizou juntamente com Aquenaton, a sua morte permanece envolvida em muitas dúvidas e longe de se encontrar esclarecida, e até ao presente, a sua câmara mortuária pode não ter sido encontrada. O pode deriva do facto de há alguns anos atrás, terem sido encontrados um conjunto de múmias não identificadas e uma delas, a que foi dado o nome de, a jovem senhora, aparentar muitas semelhanças físicas com o que se acredita saber do corpo de Nefertiti e há quem defenda que o ADN que foi possível extrair, identifica essa múmia como a da rainha tão procurada. A sua personalidade e a sua beleza são tão fortes e intrigantes que Naguib Mahfouz o excepcional escritor egípcio e Prémio Nobel da Literatura não resistiu a dedicar-lhe um capítulo na obra que escreveu sobre Aquenaton. Este grande escritor não encontrou apenas a excepcionalidade da beleza feminina em Nefertiti. Na sua diversa e riquíssima obra literária, sobretudo de exaltação ao seu Cairo e ao seu bairro, enaltece sempre a mulher egípcia, aspecto tão visível nas suas, Conversas de Manhã e de Tarde (1). Seguindo o trajecto dos personagens de várias famílias ao longo de duzentos anos, traça-nos, o seu perfil, a sua vivência, os seus sucessos e os seus sonhos. Começa com Galila Mursi al-Tarabishi, casada com Muawiya al-Qalyubi e mãe de Sharia, Seddiqa, Baligh e Radia. Desta Galila, diz-nos que era, "De fez escura, esguia, tinha uma fronte alta e grandes olhos castanhos". A sua filha, Radia Muawiya al-Qalyubi, casada com Amr, será a que adquire o papel mais destacado, pela sua postura mística e pela sua vida centenária. Dela, diz-nos que, "tinha uma personalidade forte e incontestáveis qualidades físicas. Era alta, esguia, tinha uma testa grande, um nariz direito, olhos negros amendoados e uma tez dourada". De Bahiga Surur Aziz, filha de Surur Aziz e de Zainab Abdel Halim al-Naggar, faz-nos saber que, "tinha o rosto como um halo branco, radiante e rosado. Os seus olhos eram de um verde-claro e na sua voz havia uma riqueza que lembrava o seu pai,". Já de Badriya Hussein Qabil, filha de Samira e neta de Radia ficamos a saber que, "a candura impregnava as suas feições e a delicadeza as suas maneiras". Amana Muhammad Ibrahim era filha de Matariya e prima de Badriya e "Tinha uma aparência admirável, feições delicadas, cabelo suave e era o retrato da sua mãe, Matariya". O fulgor da beleza, começamos a senti-lo em, Gamila Surur Aziz, filha de Surur Aziz e Zainab Abdel Halim al-Naggar. "O bairro de Bait al-Qadi e as suas árvores carregadas de flores de 'Dhaqu al-Paxá' nunca haviam enxergado alguém tão belo, excepto talvez Matariya, a filha do seu tio Amr. Da sua mãe herdara a tez de marfim e os grandes olhos verdes, no entanto, com os seus lábios semelhantes a um cravo e o seu corpo perfeito, conseguira superá-la". Quando pensávamos que Naguib Mahfouz nos descrevia a Nefertiti do nosso tempo, surpreende-nos com outras virtudes que encontra na outra mulher da família, Matariya Amr Aziz, filha de Amr e Radia e mãe de Ahmad, Shazli e Amana. "Com o rosto formoso, o seu corpo esbelto e a sua afabilidade (…). Era também a mais bela da família. A sua beleza excelsa despertou ciúmes nos corações das irmãs. Na sua infância e no começo da adolescência, era conhecida pela graciosidade, a alegria e pelo seu amor às pessoas e a sua capacidade de conquistar o amor destas". Nesta obra de Naguib Mahfouz temos dificuldade em eleger a egípcia de maior beleza de todas estas famílias, mas certamente que a sublime beleza de Nefertari e Nefertiti encontrou descendentes nas mulheres egípcias, apesar de acreditarmos que se a beleza da segunda é a que aparece representada no busto exposto em Berlim, será inigualável.
(1) Naguib Mahfouz, Conversas de Manhã e de Tarde, Civilização Editora, 1ª edição, Lisboa, 2009
Há 170 anos atrás, Marx no seu Manifesto, escrevia que um espectro percorria a Europa. Era o espectro do comunismo, segundo nos disse. Nos dias de hoje, outro espectro percorre o continente europeu, o espectro da estupidez e da imbecilidade. “As pessoas inteligentes da Comissão Europeia” – nas palavras do primeiro-ministro húngaro -, decidiram proibir e censurar a cultura e a arte da Rússia. É difícil imaginar cérebros tão aberrantes. Mas como no poema tantas vezes cantado, “mesmo na noite mais triste, em tempo de servidão, há sempre alguém que resiste, há sempre alguém que diz não”, há núcleos de inteligência que resistem e a Biblioteca Pública do Porto, não me proibiu, neste tempo de trevas, de ler, Tolstói, Dostoievski, Gogol, Fadeiev e Ehrenburg.
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