Alcino Silva
Cabo de Hornos, Ilha de Hornos, Província Antártica Chilena, 30 de Junho de 2014
à redação da Periscópio
caros periscopianos, o Inverno agrava-se a cada dia que passa, as temperaturas baixam, o solo endurece, as águas gelam e da cordilheira sopra um vento cortante que nos queima a pele ao mínimo descuido. No interior da casa, a lenha crepita no sossego da noite e irradia esse calor que conforta o corpo e aquieta a alma. Nos próximos tempos, os dias mais quentes não excederão os zero graus. Nas manhãs em que o sol faz brilhar a brancura do solo, tento caminhar em direcção ao cerro Prat, mas a desistência chega pouco depois, face ao frio e ao vento. Escrevo no tempo presente, mas este, como podem ver pelo endereço remetente, é já passado. Não foi a inclemência invernal que me venceu, mas antes as notícias, apesar de escassas, que chegaram do país distante que me contavam desse governo ocupado por vadios que vão devastando as esperanças e os sonhos da pátria, arruinando uma sociedade que nunca deixando de ser débil parecia desejar renascer dessas sombras onde a mergulharam cinquenta anos de autocracia e destempero mental. Os excrementos do fascismo renascem alimentados pela seiva de uma burguesia neandertal, sustentada nessa criatura de anormal intelectualidade que na boçalidade da sua ignorância, acredita presidir aos destinos do país. Sentindo a nação transformada num imenso campo de concentração a céu aberto, onde o saber, a criatividade, a educação e a cultura são mergulhados em tinas de gases fétidos, deixei a província da Última Esperança e rumei a sul, afastando-me o mais que pude de um destino que rasga o peito de qualquer humano que acredite que o sonho é a aventura central da humanidade. Escrevi as duas últimas cartas de despedida, uma a Neruda, o poeta que deixou o livro da minha vida, e uma outra para vós com um sentido abraço final. Ao poeta da Aracâunia, falei-lhe dos seus Vinte Poemas de Amor e de como também eu, escutei os silêncios da minha Albertina, não nesse comboio a caminho de Concepción, mas antes na varanda da vida, enviando cartas por todos os comboios que iam passando. Também eu inclinado nas tardes lhe lancei as minhas tristes redes, mas apenas o seu silêncio acossou as minhas horas perseguidas. Nas pedras do cais do porto de abrigo onde me acolhi em busca de refúgio, não havia elos de ferro onde pudesse amarrar as cordas da minha solidão e apesar de romper as mãos, agarrando-me, a maré cheia da alegria acabou por afastar para longe a tristeza onde repousa a minha alma. Ah, poeta se soubesses como eu a amei, escrevi ainda em rodapé da carta, mas tudo terminou como no último dos poemas do teu livro, como se dissesse ainda, é a hora de partir, a dura e fria hora que a noite prende a todos os horários, mas disse-o com as palavras da minha canção desesperada, A noite escura, as águas revoltas e eu só, nessa luta constante e intensa para chegar mais longe ao destino sem nome e sem lugar onde possa, por fim serenar. E a segunda carta é esta que vos envio do ponto mais meridional do hemisfério sul se esquecermos as longínquas Ilhas Ramirez. Aqui reina o vento e a chuva e o mar envolve ambos no seu manto de cinza e de frio. Aqui não há solidão nem silêncio, pois neste lugar habitam os elementos da natureza sob esta pedra musgosa batida pela água que se ergue do mundo do mar e da outra que tomba do universo. Daqui não é possível fugir, mas também é certo que as maldades do mundo não penetram na pureza desta natureza ancestral. Por vezes caminho até ao monumento ao albatroz errante a ave que enche o ar com o seu voo majestático e belo. Há dias no regresso e ao olhar a pequena capela no outro extremo, cuidada pelo faroleiro e família,recordei palavras de Sophia carregadas dessa beleza que a poetisa lhe incorporava. Apenas pude lembrar de forma solta nos interstícios do pensamento, pois nada trouxe comigo, exceptuando a memória, ou que restava dela, e a alma magoada. «Quando saíres da aldeia, à direita encontras um caminho de terra amarela, vais por ele e sobes a colina. Ao chegares, encontras uma igreja, entra e ajoelha-te, contempla as grandesparedes brancas e escuta o silêncio». Não alongo esta carta, sintam no interior destas palavras um desses abraços estendidos que deixamos àqueles que connosco comungam os dias de esperança, que não desistem do sonho que vive desde o romper da história no mais profundo da alma humana, acreditando que a pátria de Damião de Goes, de 1383, dos poetas e dos homens livres há-de renascer sobre os escombros da pestilência dessas criaturas imundas que hoje povoam os corredores dos palácios onde acreditam governar. Nas tardes em que o vento e a chuva estabelecem uma trégua, abeiro-me da falésia e admiro o voo do albatroz errante com os quase três metros das suas asas estendidas planando. Por momentos, sinto a alma apaziguada, mas então ocorre-me à memória o texto que abre o livro de Hemingway e já não sei se os sinos não dobrarão por mim.
Águas passadas do rio
Meu sono vazio
Não vão acordar
Rios que vão dar ao mar
Deixem meus olhos secar
Águas do rio correndo
Poentes morrendo
P'ras bandas do mar
Águas das fontes calai
Ó ribeiras chorai
Que eu não volto a cantar
José Afonso
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