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"Metropolis" (1927, Fritz Lang)
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Cristina Guerreiro
(Ferreira da Cunha) |
Para lá, ainda o consolo do dia pardo a disfarçar a travessia tranquila, um faz-de-conta em que nada aconteceu, ainda há tempo para viver, embalos de quem caminha sobre a água e observa o céu sem nada no olhar. Ocupam espaços. Trituram ar. Estalam ossos dos dedos. Em minutos, parecem ter ganho corda de realejo e animam-se numa corrida sem prémio, acotovelam-se, desprezam-se em hálitos baços, espantam pombos, desaparecem sob o asfalto como se a cor das estradas os engolisse de um trago.
Tão rápido perderam o azul líquido, um sonho que fosse nascido em cauda, ou ponte, ou até mesmo um agasalho, qualquer coisa... uma coisa qualquer que pudessem esconder nas mãos e aquecer e dizerem sua.
No regresso vêm moribundos, feridos de um cansaço fétido e rancoroso, alguns a fingir a própria morte, outros a brincar com ela. Não há água que os impressione, que os baptize de serem homens de novo, um caminho renovado pela beleza da vida e da simplicidade do dia e da noite.
Sinto-me só.
Uma solidão cosida à pele que me magoa e arranha nas costuras da lembrança, sem fecho nem botões para despir, um desconforto que incomoda pelo aperto das lágrimas que não saem e amargam, engasgam, atropelam vozes, datas, gentes e até os rios da minha existência.
Ninguém me vê. Ninguém olha o rio. São ruas de água, obstáculos, incómodos.
Fui feliz em todos os rios que conheço.
E uma bonomia amorna-me o céu da boca e faz-me entoar ladainhas de criança numa gritaria silenciosa, coisas que nunca se esquecem.
O rio tem destas coisas, tanto limpa o encardido e mostra os sorrisos dos dias bonitos como afasta as manchas da nebulosa do imaginário, uma memória mentirosa que suja a boca de palavras que inventamos para defender a dor do que não querer e não gostar, olhos tapados por mãos que vão entreabrindo dedos, claridades que escapando, ferem.