StatCounter

View My Stats

01/07/11

OS AMERICANOS

António Mesquita


“As mais profundas fontes da violência assassina nos EUA são uma espantosa desigualdade, uma terrível pobreza, o niilismo duma cultura saturada de drogas e o fácil recurso às armas. A contribuição da televisão é um alvo conveniente para uma cultura política que torna difícil crescer-se com o sentido de se pertencer a uma sociedade decente.”

(Todd Gitlin, 2002)



Muitos de nós, assinariam por baixo, apenas por preconceito. De facto, não vivemos naquele contexto e só podemos, em tese, concordar que uma sociedade reduzida àqueles ingredientes não é uma “sociedade decente”. E até a crítica da violência no cinema e na televisão nos pareceria uma crítica “conveniente” (para sermos desviados dos verdadeiros problemas). Porque é muito mais plausível que essa violência, duma maneira geral, entorpeça ou paralise, mais do que incite à imitação.

O problema é que podemos, munidos duma dose razoável de imparcialidade, testemunhar (mas sempre por procuração) que uma outra América existe, a da mais antiga e bem sucedida democracia dos tempos modernos, a da revolução científica e tecnológica, a das artes florescentes e a duma pujante literatura. Esta outra América não é, assim, a do povo contra a duma elite predadora que o governa e domina, porque isso seria demasiado fácil e, no fundo, beatice política. É evidente que o “povo” americano quer essa elite, apesar de sofrer os seus incríveis abusos. E uma parte desse povo compensa esse compromisso com o “mal” nas suas proliferantes soluções para-evangélicas, outra nos combates ritualistas do sistema bipartidário e outra ainda no apoliticismo dominante.

A explicação para este conformismo e para aquelas “substituições” está num pragmatismo indefectível que  impede os americanos de encontrar alternativas utópicas ou numa qualquer teoria. É por isso que os flagelos que menciona Todd Gitlin lhes parecem um custo (pelos vistos ainda suportável) a pagar  pela vitalidade da sociedade americana e pelas suas inegáveis virtudes, e não como qualquer coisa que se possa erradicar sem mudar completamente de vida.


O CAVALO DO INGLÊS

Mário Faria


http://www.elfwood.com/art/c/e/cel/death_horse




O cego cifrão conduz a rapar o fundo da panela, para vender em hasta pública, em baixa de mercado, património do Estado. Conduz à confrangedora insensibilidade a cortes brutais no investimento, a par de uma crença natural num mítico aumento das exportações. Conduz à assunção de medidas extraordinárias como as que (hoje) foram divulgadas, oficialmente.

Foi no dia 30 de Junho de 2011 que ficamos a saber o programa do novo governo que materializa todo o programa que a troika estabeleceu e a congénere nacional subscreveu. Foi mais longe : instituiu um novo imposto que vai ser tributado e será aplicado sobre o subsídio de Natal do corrente ano, e foi anunciado por Passos Coelho de forma solene.

Fazer o mal todo de uma vez e o bem aos poucos (conselho de Maquiavel ao Príncipe) parece ser a estratégia do governo. Descortina-se, por detrás da retórica política do actual executivo, uma estética de combate ao chamado estado social, em que prevalece, de forma clara, as receitas neo-liberais, de volta e em força ao panorama político europeu.

O cavalo do inglês, quando (finalmente) se tinha habituado, com êxito, a viver sem comer, morreu ! A imensa maioria da população portuguesa, que vai sofrer dolorosamente os efeitos devastadores destas medidas, quando estiver finalmente convencida da sua bondade, está pobre, sem esperança e como única perspectiva assistir à expulsão do país da primeira divisão europeia, para passar automaticamente para o grupo dos países párias, excomungados pelos seus pares e ímpares.

A Europa tornou-se um pesadelo. O sonho de uma Europa unida já era e, entretanto, perdemos instrumentos para combater a presente crise de forma soberana. Como soberana resta (exclusivamente) a dívida. Do orgulhosamente sós, passamos a andar nas melhores companhias e fomos considerados, durante algum tempo, bons alunos e bons rapazes. Hoje, tendemos a ser remetidos para a sarjeta pelos nobres companheiros, para ficarmos orgulhosamente sós ou mal acompanhados.

Triste ! Que se falidem todos...

MOVIMENTOS

Alcino Silva

http://squatchabyss.blogspot.com



Os compassos da lenta descoberta

principiaram como o sol a chegar no fim da madrugada. Apareceram como luz a romper a noite, aumentando de intensidade num processo lento e de achamento até tudo em redor aparecer visível e quando percebemos que a escuridão partiu e os objectos se tornam perceptíveis, compreendemos que um novo dia nasceu. O Inverno embarcara no último navio a deixar o porto e a Primavera surgiu do interior de uma auréola e trazia todas as cores que a imaginação humana pintou e o inacreditável parecia fazer nascer jardins por todas as ruas onde passavas e as flores que cresciam apareciam como uma oferta encantada aos meus olhos. Paulatinamente o sonho foi ganhando forma, esboçou as linhas principais, desenhou um rosto, fez transpirar um olhar e através dele, recriou a natureza. Fechei os olhos e apertei os dedos. Tornei a abri-los e a fantasia permanecia, era real e deixei-me ir em barco navegado, em sono de romantismo, em delírio de poeta e como em terra desconhecida procurei conhecer o dialecto do saber, o alfabeto da melodia que bailava sobre mim e fui encontrando, formas e traços de um rio que crescia e se alargava para além das margens.

Ensaiei a dança das palavras

uma primeira e outra segunda, uma frase e um parágrafo e em breve dançavam soltas como as estrelas no interior das galáxias, rodando e crescendo. Foram dizendo de mim e perguntando de ti, adivinhando caminhos, semeando metáforas, procurando a beleza dos adjectivos como forma de construir a tua e viajei de noite e de dia, umas vezes fantasma, outras pássaro de floresta, contei o mundo, inventei histórias, naveguei do passado para o presente, acreditei ser personagem do futuro e voltava sempre às palavras que falavam de ti e dos lagos que habitavam no interior dos teus olhos.

E vi o encantamento soltar as asas

e voar por sobre os rios que fugiam das labaredas de um incêndio que acendias todos os dias que somavam os anos. A cada instante teu, brotava um planeta e o vento era mensageiro das cartas escritas em noites de lua cheia enquanto a minha nau se perdia nos mares do sonho sem conseguir encontrar o rumo que o teu astrolábio feiticeiro desenhava no meu caminho. Içava as velas, desfraldava os panos do meu navio para amparar o sorriso que enviavas em passarolas de papel colorido presas por um cordel que as tuas mãos de fada faziam girar sobre mim, chamando-me. E fui, tantas vezes quantas me chamaste, e outras tantas, em que acreditei ouvir-te. Acordava estonteado, aturdido pela delícia da tua presença e as imagens do amanhã faziam apagar a tristeza do passado com essa chama quente que irradiava de ti.

E veio a ânsia, despida

pela ternura de um gesto que marcava a fogo a tua passagem. Construí pontes, ergui os braços nessas preces que procuram o destino e desejei ser ave, senti-me comandante de uma armada invencível, fui marinheiro e conquistador, procurei-te entre as estrelas e as minhas mãos estenderam-se para ti na carência amarga do tempo perdido e arquitectei as carícias que as mãos desenham na procura de um rosto amigo e senti o afago das madrugadas sem nome passarem por mim quando te lembrava e soube que a dança do universo vivia em mim quando te aproximavas, mesmo que as minhas mãos não te alcançassem.

E todo este movimento perpétuo

conduziu-me pela vivência dos dias mágicos, sem tempo, que existem no limbo dos momentos perfeitos. Percorri as margens do Nilo e avistei-te nesses passeios matinais de princesa levando contigo essa beleza imemorial que castiga os homens pela incapacidade de amarem. E fui, umas vezes sem rumo, outras no interior de uma geometria infinda. Nem ventos nem marés, apenas o teu sorriso escrevendo palavras de fumo sobre o azul infinito. Nos teus olhos viajando para sempre a eternidade e nos meus, sedentos como a terra seca do deserto, apareciam oásis onde saciava a sede milenar dessa beleza que em ti viaja.

Aprendi a sinfonia dos silêncios. Das esperas

sentado no cais do tempo aguardando o regresso do teu navio que zarpou numa manhã de sossego, nesse instante em que os sons se extinguem, se esvaem como água evaporando-se ao sol. De forma progressiva, foste apagando para mim a luz dos teus olhos, essa chama com que acendias as estrelas que enxameavam o nocturno e universal céu. E os abraços do sorriso que ateava na minha solidão fogueiras nocturnas de alegria, escondeu-se atrás das nuvens que subtraem a música à lua. A minha lembrança lança cordas de esperança à melodia que vinda de ti soa como um tambor no interior da memória e atiço a fantasia que me fizeste viver, para que não acordem os fantasmas que haviam partido perante o fulgor da ternura que carregavam os gestos e afectos que atiravas como pétalas sobre a ilha onde vivia.



MUROS RELIGIOSOS (2) - O CRISTIANISMO

Mário Martins
Cristo crucificado - Diego Velázquez, 1632 (Wikipédia)

“Jesus é o filho do povo da Aliança e da Promessa (o povo judeu), mas rompe esses limites para se dirigir à humanidade”

                                                           Olivier Clément **

“Ele (Jesus Cristo) tomou o lugar do Outro (Deus)”
                                                                  
                                         Régis Debray *


O cristianismo é Jesus, em quem os cristãos reconhecem o Cristo, isto é, o “Messias”, o Ungido do Espírito, Palavra de Deus encarnada, o próprio Deus feito carne. (…) “Quem me vê, vê o Pai”, diz Jesus. **

Mas se Jesus preenchia (por parte da mãe Maria) o requisito, em que os judeus acreditavam, de o Messias ser um descendente do rei David, ele não se assume como um rei ungido que os salvasse da opressão. À pergunta de saber se “É lícito ou não pagar o imposto a César?”, Jesus olha para uma moeda e pergunta: - De quem é esta imagem? De quem é esta inscrição? - De César - respondem. - Muito bem - diz Jesus. - “Dai, pois, a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”. ***

O cristianismo é uma certa maneira de compreender o homem, o sentido da sua vida, o seu destino (…) Nisto, completam-se e interferem uma antropologia, indicações éticas e uma doutrina da salvação. **

A antropologia cristã é, em grande parte, pré-cristã: é a que a experiência religiosa de Israel explicitou e que se exprime no mito, tão comummente conhecido como mal compreendido, dos relatos da Criação (abordados no artigo anterior). **

Estes relatos, pese embora às interpretações fundamentalistas, não são descrições históricas. São a expressão simbólica do que a experiência espiritual de Israel compreendera de essencial de um desígnio de Deus criador de todas as coisas. **

Essencial, a bondade do mundo: foi por amor que Deus se quis criador de todas as coisas. **

Inclui, ou gera, o cristianismo uma moral? A resposta é muito controversa (…) Contudo, toda a gente está de acordo em dizer que o Evangelho impulsiona um certo estilo de vida, que o crente se deve esforçar por viver uma “existência cristã”. **

«Ouvistes que foi dito: “Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo”. Eu, porém, digo-vos: “Amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem. Fazendo assim, tornar-vos-eis filhos do vosso Pai que está nos céus; pois ele faz que o sol se levante sobre os bons e os maus» (Mt. 5, 43-45) **

«Ninguém pode servir a dois senhores, porque, ou há-de odiar um e amar o outro ou se dedicará a um e desprezará o outro. Não podeis servir a Deus e às riquezas» (Mt. 6, 24) **

Como muitas outras religiões (como todas?), o cristianismo projecta-se numa comummente chamada salvação (…) De que é que, portanto, tem a humanidade necessidade de ser salva? Duas respostas principais se deduzem de toda a tradição cristã: o pecado, a morte. **

Deus, segundo a imagem que dele dá Jesus, não tem outro desígnio nem promulga outra lei que não seja chamar os homens a amá-lo amando-se uns aos outros. O pecado é o que contraria este desígnio, o que é recusa desta oferta. **

De uma maneira estranha, a Escritura liga a morte ao pecado. Principalmente no texto de São Paulo na epístola aos Romanos: «Assim como por um só homem entrou o pecado no mundo e, pelo pecado, a morte…» (Rom. 5, 12) (…) Se é evidente que a realidade orgânica faz parte do mundo criado, o “morrer humano” é o que o homem, através da sua história colectiva, fez da morte, a maneira como ele a interpreta e a vive. É esse “morrer humano”, obra do homem, que São Paulo pode dizer que entrou na nossa história pelo pecado. **

(…) O mal é um dado da existência humana, quer individual, quer colectiva. Mal proveniente da natureza ou com origem na actividade dos homens (…) É do fundo dessa situação que, em todos os tempos, uma grande parte da humanidade (…) espera, deseja, pede, uma “salvação”. Na esteira do povo judeu, cuja experiência humana e religiosa é relatada pela Bíblia, os cristãos estão nessa espera. Mas a sua fé consiste em terem reconhecido que se abriu uma brecha naquela fortaleza do mal, que é proposta aos homens uma salvação na história concreta de um homem, que viveu na Palestina há vinte séculos, Jesus. **
Se o cristianismo é indubitavelmente universalista, paradoxalmente ele é a base em que assentam três grandes religiões ou igrejas: a católica, a ortodoxa e a protestante.


* “O fogo sagrado”, editora Âmbar, 2005
** “As grandes religiões do mundo”, Jean Rogues, Direcção de Jean Delumeau, 1993, Editorial Presença, 2002.
*** “A vida de Jesus (verdades escondidas)”, Michael Baigent, Editorial Presença, 2009

Pequeno léxico:
Jesus = Deus salva (em hebraico)
Evangelho = Boa nova



PAPINIANO CARLOS

Manuel Joaquim

Papiniano Carlos



Em Janeiro passado, a editora TRINTA POR UMA LINHA apresentou na Cooperativa Árvore, aqui, no Porto, um livro infantil, escrito por Papiniano Carlos e ilustrado por Elsa Lé, com o título “Uma Estrela Viaja na Cidade – Poema Dramático”. É um livro de uma beleza extraordinária que cativa tanto miúdos como graúdos.

Infelizmente, Papiniano Carlos, por razões de saúde, não pôde comparecer. Fiquei triste. Mas tratei logo de saber se era possível visitá-lo para obter uma dedicatória nos livros que comprei para as minhas filhas e, ao mesmo tempo, aproveitar a oportunidade para conversar um pouco e recordar encontros e acontecimentos anteriores. E assim aconteceu há pouco tempo. Foram horas de convívio muito interessante, com a presença da D. Olívia, sua Companheira de longa vida e que conheci há cerca de quarenta anos, por ter sido nessa altura uma referência nas técnicas do parto sem dor, e com a presença de sua filha, Salomé, que qualquer dia também surpreenderá na arte da escrita.

É bom lembrar quem é Papiniano Carlos.

Em 9 de Novembro de 2008, quando fez noventa anos de idade, Papiniano Carlos foi homenageado como Poeta-Cidadão. A homenagem foi organizada pela Associação de Jornalistas e Homens de Letras do Porto, pelo Ateneu Comercial do Porto, pelo Círculo de Cultura teatral/TEP, pela Cooperativa Árvore, pelo Sector Intelectual do PCP, pela Unicepe, pela URAP e por uma Comissão Promotora constituída por um significativo número de pessoas das mais diversas actividades cívicas e culturais.

Foi editado pela editora “Modo de Ler” um livro para o acontecimento, “PAPINIANO CARLOS – Para o teu aniversário mando-te um cravo vermelho”, ilustrado com a reprodução de dois quadros de Armando Alves, com textos ou poemas dedicados a Papiniano Carlos, de Jorge de Sena, de Luísa Dacosta, de Albano Martins, de António Rebordão Navarro, de Francisco Duarte Mangas, de João Manuel Ribeiro, de João Pedro Mésseder, de José Viale Moutinho, de Nuno Higino, de Vergilio Alberto Vieira, e com três trabalhos muito importantes sobre a obra do homenageado, de José António Gomes (A Obra de Papiniano Carlos: Uma Introdução); de Ana Margarida Ramos (Quatro poemas, muitas leituras, uma vontade irreprimível de mudar o mundo) e de Sara Reis da Silva (A Menina Gotinha de Água, de Papiniano Carlos: da «força criadora da natureza» à «alegria invencível de viver e de criar».

O site da Universidade do Porto - Antigos Estudantes Ilustres da Universidade do Porto, contém muita informação sobre a vida e a obra de Papiniano Carlos.

Muita poesia sua está publicada em Portugal, Espanha, Brasil, França, Argentina, Rússia e gravada em discos de Carmem Dolores (A Menina Gotinha de Água, com a voz de Carmem Dolores ); de Luís Cília; das Canções Heróicas II, de Fernando Lopes Graça; de Luísa Basto; da Antologia da Poesia Portuguesa (Papiniano Carlos por Papiniano Carlos - Discos Orfeu).

No cinema encontra-se o texto do poema A Menina Gotinha de Água no filme a cores com o mesmo nome, realizado por Alfredo Tropa e produzido pela RTP. A personagem do Zangão tem a voz de Papiniano Carlos.

A veia criativa do artista não se esgota na escrita. A sua veia criativa entra no desenho e na pintura, cuja actividade é praticamente desconhecida fora do círculo familiar.

No final da conversa, Papiniano Carlos presenteou-me com a leitura de um poema inédito, escrito em Moscovo, em 30 de Outubro de 1973, dedicado à Juventude, representada simbolicamente por seus netos, Alexandra e Jorge.

É esse Hino à Juventude, inédito, que aqui reproduzo com a devida autorização do autor.



“NOS MEUS OMBROS

para a Alexandra e para o Jorge



Carrego-vos nos ombros

meus netos

meu navio iluminado

milhões e milhões como vós

erguem-se nos meus ombros



Quem ousará descarregar

sua ira seu ódio

contra vossa inocência

vossa proa matinal?

Quem ousará

negar-vos o direito

de viver e procriar

de seres livres e criadores

no país em que nascestes?



Quem ousará

prender-vos com cadeias de ferro

os braços construtores

da grande pátria terrestre

vendar-vos o límpido olhar

de conquistadores celestes?



Convosco meus netos

erguido a toda a altura do meu olhar

caminho sem temor na bruma

que nos cerca ainda

e olho de frente

os super-hitlers do terror

a hidra e as bestas expelidoras

do fogo e da náusea

dos novos infernos

enquanto vós

invencíveis

cresceis

para a paz e para o amor.



Papiniano Carlos

Moscovo, 20.10.1973



View My Stats