Pobre almita tão meiguita
Deste corpo sociazita
Que para uns duros lugarzitos,
Escuritos, desertitos,
Sozinha ao presente vás
Ai nunca mais brincarás…
P. Élio Adriano, Imperador
Foi em mais uma deambulação por terras de Espanha, esse país ímpar em que, por via de regra, as pessoas não respondem que são espanholas mas sim andaluzas, bascas, catalãs, galegas e por aí fora, que fortuitamente li que os imperadores romanos Trajano e Adriano, pai e filho adoptivo, haviam nascido em Itálica, nos arredores de Sevilha. Já não me lembrava, eu que há uns bons pares de anos me maravilhei com esse livro extraordinário de Marguerite Yourcenar "Memórias de Adriano"*, mas não há dúvida, está lá, logo na página 12: "mas lembro-me das minhas corridas de criança nas colinas secas de Espanha".
É com o relato de uma vulgar consulta médica mas onde, a um tempo, desfilam a tragédia humana e a elevação literária, que o livro começa.
Meu caro Marco (Aurélio), escreve ele pelo punho de Yourcenar:
"Fui esta manhã a casa de Hermógenes, o meu médico, que acaba de regressar à Villa depois de uma viagem bastante longa pela Ásia. Devia ser observado em jejum; tínhamos marcado a consulta para as primeiras horas da manhã. Deitei-me num leito depois de ter tirado o manto e a túnica. Poupo-te a pormenores que te seriam tão desagradáveis como a mim próprio e à descrição do corpo de um homem que avança na idade e se prepara para morrer de uma hidropisia do coração. Digamos apenas que tossi, respirei e retive o fôlego conforme as indicações de Hermógenes, alarmado, a seu pesar, pelos progressos tão rápidos do mal e disposto a atribuir as culpas ao jovem Iolas, que me tratou durante a sua ausência. É difícil permanecer imperador na presença de um médico e difícil também conservar a qualidade de homem. O olho do prático só via em mim um montão de humores, triste amálgama de linfa e de sangue. Veio-me esta manhã, pela primeira vez, a ideia de que o meu corpo, este fiel companheiro, este amigo mais seguro, melhor conhecido por mim que a minha alma, não passa de um monstro dissimulado, que acabará por devorar o seu dono (…)".
Dezanove séculos depois, já no ano I do 3º. milénio da nossa era, pude ir a sua casa, a Villa Adriana, ali nas colinas de Tivoli, nos arredores de Roma, que dessa vez imperialmente ignorei, emocionar-me entre as suas ruínas, com o livro debaixo do braço. Guardo como um tesouro esse momento único e sei que voltarei a ler o livro, eu que já o li e reli.
* Editora Ulisseia
1 comentário:
Parabéns pelo artigo que me fez comungar consigo momentos de emoção.Também eu li " Memórias de Adriano" apaixonadamente e nas minhas inúmeras viagens a Itália, não descansei enquanto não visitei Tivoli e a Villa Adriana. Foi magia pura! Só tinha vontade de ter efectivamente realizado o meu sonho de adolescência de ser arqueologa e poder passar a minha vida naquele local a trabalhar. É maravilhoso e Tivoli uma cidadezinha encantadora de onde guardo imensas imagens, sensações e emoções. Obrigado por me ter feito lembrá-las.
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