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01/02/09

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A ESTUFA

Cristina Guerreiro

http://i13 7.photobucket.com/album s/q204/kimera1/greenhouse0103.jpg




Nos últimos anos o tempo custara mais a passar. Ansiava pelo recato da reforma, os projectos para os dias livres desviavam-lhe a atenção da revisão das letras dos outros, fartava-se, não encontrava arte que genuinamente o alterasse na emoção e lá ia riscando, ressalvando, emendando.
Só a estufa de que sempre falava num futuro caminhado lento lhe provocava o entusiasmo para dobrar mais um dia, ou menos um dia.
E o dia chegou.
Levou quase nada da sua mesa e num gesto arrojado ofereceu o bonsai à colega e parceira dos cafés a meio da manhã, desejou-lhe boa sorte, recomendou-lhe água com tempero e nada de sol directo, fragilidades de uma árvore submetida à mão de jívaro.
No dia seguinte sorriu, alcançou a estufa bem-amada e dedicou-se-lhe como um amante que chegara de uma longa ausência.
E no outro dia também. E depois e ainda durante mais dias o mesmo afã nos vasos, na rega, na limpeza, na verificação dos vidros inteiros, nas correntes de ar junto às orquídeas.
Até que sentiu que repetía os mesmos gestos do lápis, a correcção, a emenda, a antecipação do erro.
Desolou-se.
Tantos anos à espera e afinal, que doce engano!
No primeiro impulso virou costas à estufa e deixou-a entregue ao ritmo da natureza, sentou-se no sofá a ver programas de televisão que se repetíam, comía frente ao ecrã, adormecía torto e emperrado no gelado da noite fora com ruídos de detergentes anunciados na pouca roupa da apresentadora.
Pegou em livros mas os olhos treinados atiravam-no para o trabalho de pontuação e à falta do lápis cravava a ponta da unha assinalando o engano.
Um dia resolveu visitar o escritório, ver quem se sentava na sua mesa e muito agradado notou o lugar vazio pela parca escolha encontrada para o igualar na mestria da revisão. Trocou palavras e o café tomado lento com a ex-colega, sentiu o dia cheio.
Voltou à estufa. Parecía que tudo crescera desmesuradamente na sua ausência e sem ajuda da sua parte.
Não fazía falta, parecía estar dispensado da vida.
Descobriu uma erva daninha de caule enrolado e peludo junto ao pé de rosa ainda em botão e achou-lhe uma beleza tamanha que não lhe restaram mais dúvidas.
Ligou à colega e convidou-a para tomar um café na sua estufa.

O FASCÍNIO DA MATEMÁTICA

Mário Martins


Rhombicuboctahedron for 1509 publication called "Divina Proportione"





Como pode, sem cair no ridículo, um ignorante como eu, que praticamente se esqueceu de como fazer, manualmente, uma conta de multiplicar ou de dividir, falar do fascínio tardio que a matemática lhe causa? a matemática, quer dizer, não a sua técnica em que sou, repito, um rematado ignorante, mas o seu papel central no processo de conhecimento e compreensão da realidade.
A resposta talvez seja a de que a matemática, muito para além dos números e da aritmética é, fundamentalmente e segundo a sua definição moderna e consensual, a ciência dos padrões, consistindo, se assim posso dizer, na descoberta de tipos de comportamento da realidade e na formulação de teorias explicadoras (que passa pelo estudo dos próprios padrões da matemática ou de outra disciplina).
Mas há ainda o outro aspecto sedutor de os seus “objectos” se revelarem paradoxalmente infinitos (é sempre possível aumentar um número, por maior que seja), no meio do caldo finito da realidade física.
Vem este prelúdio a propósito de um livro recentemente editado entre nós, sobre “os sete maiores enigmas da matemática contemporânea”1. Uso o termo prelúdio para corresponder ao modo como o autor designa o primeiro grande problema (que a comunidade dos matemáticos, segundo ele, considera o mais importante) e que é conhecido pela Hipótese de Riemann2: a música dos primos.
Que música dos primos (números que são divisíveis apenas por eles próprios e por 1) é essa?
O grego antigo Euclides demonstrou que há infinitos números primos e que qualquer número natural maior que 1 ou é um número primo, ou tem uma decomposição em primos única (a menos que haja troca da ordem dos factores), tal como nos exemplos: 21 = 3 x 7 ou 260 = 2 x 2 x 5 x 13.
Outra característica dos números primos, segundo a Conjectura de Goldbach3 (que continua em aberto apesar de pesquisas por computador a verificarem para todos os números pares menores ou iguais do que 400 triliões), será que qualquer número par superior ou igual a 2 é a soma de dois números primos, como nos exemplos: 8 = 3 + 5 ou 12 = 5 + 7.
E o matemático chinês Jeng-Run Chen mostrou, na segunda metade do século XX, que a partir de um certo número N, todo o número par é, ou uma soma de dois números primos, ou a soma de um número primo com o produto de dois primos.
“À medida que olhamos para números cada vez maiores, os primos parecem tornar-se mais escassos”, tal como se pode ver no apuramento, por tranches numéricas até 1 000 000, da quantidade de primos, em percentagem:
até 10
100
1000
10 000
100 000
1 000 000
50%
24%
16,8%
12,3%
9,6%
7,8%

Significa isto que “a partir de certa altura deixa de haver números primos?”, “ou será que a partir de certa altura a tendência se inverte e encontramos muitos primos?”; em suma, “qual é o padrão, se é que existe, formado pelos números primos entre todos os números naturais?”
Julgo poder dizer que a Hipótese de Riemann, ainda não demonstrada (a demonstração dá direito a um prémio de um milhão de dólares), define um padrão dos primos. E o que é que isso interessa à nossa vida?
Segundo o autor, “cada vez que o leitor usa uma caixa automática no seu banco, ou faz uma transacção comercial na Internet, a segurança da sua transacção depende da teoria matemática dos números primos”. “Quando viajamos de carro, comboio ou avião, entramos num mundo que depende da matemática. Quando pegamos num telefone, vemos televisão, ou vamos ao cinema; quando ouvimos a música de um CD, nos ligamos à Internet, ou cozinhamos algo num forno de microondas, estamos a usar os produtos da matemática. Sem matemática avançada, nenhuma destas tecnologias e conveniências existiriam”.
Filosoficamente, questiona-se se a matemática é invenção ou descoberta. A minha resposta è similar à que dou à questão do livre arbítrio: acho que este é real, no sentido em que os seres humanos têm o poder de agir sobre a natureza, mas que é aparente, no sentido em que o mesmo lhes foi determinado pela própria natureza.
Como alguém disse, a matemática é a linguagem do universo.



1 “Os Problemas do Milénio”, do matemático americano Keith Devlin, editado pela Gradiva.
2 Georg Friedrich Bernhard Riemann, célebre matemático alemão do século XIX, ao qual, segundo o autor, “se deve muita da nossa concepção actual da natureza da matemática”.
3 Christian Goldbach, matemático amador alemão do século XVIII.

KARATÉ KID

Mário Faria




Costumava cruzar-me com um moço vestido a rigor com o fato de judoca e que aproveitava o passeio como tapete para simular os golpes marciais, que mimetizava a preceito e que acompanhava com urros guerreiros, tradicionais daquelas disciplinas orientais.
Certa vez, no fim do período estival, o judoca ao passar parou de repente e sobre mim simulou um golpe marcial que me fez recuar. Receoso das suas intenções, disse-lhe muito sério :
- “Que é isso ? ”.
Respondeu-me com toda a serenidade :
- ”Fosca-seee, não tenha medo, não ataco pessoas indefesas. Estou apenas a treinar os golpes que aprendi esta semana. Fosca-seee, adoro as artes marciais e sou conhecido lá no bairro por Karaté Kid, porque acham-me muito parecido com o artista. Não perco um filme do género. Os gritos de guerra, aprendi com a equipa de râguebi da nova Zelândia que acompanho sempre com alguns passos tribais daqueles monstros, que são baris. Fosca-seee !”
Deu meia volta, deixou-me a falar sozinho, e foi pela rua baixo a simular golpes improváveis, com berros marciais que deixavam os transeuntes espantados e traziam às portas das lojas muitos curiosos para espiar o que se estava a passar.
Não tive nenhum encontro imediato de qualquer grau com o Karaté Kid, durante uns meses.
Hoje, vi o homem : andava a passear no jardim em fato de treino, mas em vez dos golpes marciais caminhava calmamente e gesticulava como se estivesse a discursar para um público que o escutava atentamente. Quando parou junto de mim, fiquei surpreso : parecia distante e circunspecto, embora continuasse a gesticular, com o dedo indicador em riste. Antes que me metesse o dedo no olho, tomei a iniciativa de lhe perguntar :
- “Então, está bom ?”.
Respondeu-me em estado de exaltação :
- ”Fosca-seee, lesionei-me gravemente num pulso e tive de deixar as artes marciais, depois de um treino a partir tijolos. Andei desanimado uns tempos. O sonho dos jogos olímpicos já era, fosca-seee . Resolvi dedicar-me à política, que parece coisa fácil e traz muitas vantagens, mas nenhum partido aceitou que fosse candidato à AR, e mesmo como militante todos recusaram, porque acharam que não tinha perfil, não mostrava dedicação e ideologicamente não sabia o que queria . Fosca-seee, grandes palermas”.
Comentei, o mais sério que me foi possível :
- “Oh Karaté Kid, a política, porquê ?” .
Olhou para mim e disse-me muito solene :
- “O Karaté Kid das artes marciais morreu. Agora sou um discípulo do Obama que é o novo Messias: salvador da terra, do ar e dos mares. Fosca-seee !”.
Não sorri nem me admirei muito por esta mudança tão súbita de vocação e antes que lhe fizesse alguma pergunta, virou-se e pude ver e ler nas costas do casaco do seu fato de treino o rosto de Barak Obama e o célebre lema da campanha : yes, we can. Entrei no jogo e comentei respeitosamente :
- “Estamos em Portugal, também gosto do Obama, mas estou bem mais preocupado com o que se passa por aqui e com quem nos governa. Não acredita que possa haver um líder nosso, todo nosso, que nos encha de esperança ?”
Ficou muito sério a ponderar o que lhe tinha dito. Andou de um lado para o outro, muito pensativo, como se estivesse a tomar um parecer muito importante. Parou de repente e disse-me :
- “Fosca-seee, não vejo ninguém e a cor é o que menos conta. O Sócrates é arrogante e só fala dum tal Magalhães que ninguém conhece, o Cavaco parece que engoliu um pau e fala de uma forma irritante, a Manuela mete medo ao susto, o Portas é esquisito, o Loução é do grupo vodka com laranja e gosto mais do tinto, o Jerónimo tem um grande defeito : é amigo do Orelhas. Não servem. Já decidi , com esses tipos não vamos a lado nenhum. Vou esperar pela formação do novo partido do Alegre. Gosto dos poetas, leio muito pouco, mas gosto muito das letras de algumas canções. Serve para isso, pelo menos. No meu bairro não gostam dele e dizem que não deve ser grande coisa porque nunca foi cantado pelo Tony Carrera. Fosca-seee, são mesmo ignorantes.”
Ia dizer-lhe qualquer coisa, mas deu meia volta e lá foi o Karaté Kid, discípulo de Obama, gesticulando e simulando um novo discurso, provavelmente a pensar como participar activamente na vida política portuguesa e como se apresentar ao eleitorado. Com ele, a crise tem os dias contados. Haja esperança !

A MENTE SUBMERSA

António Mesquita
http://dfckr.com/archives/img/illustration/submersion.png



"Quando um homem entra na água até aos joelhos, ou até à cintura, pode ver a água em torno de si. Em contrapartida, se mergulhar na água, deixará de poder discernir algo de fora; tudo o que sabe é que todo o seu corpo se encontra na água. Isto é o que sucede àqueles que se deixam imbuir no olhar de Deus."

"The Enlightened Mind" (citado por Peter Sloterdijk in "O Estranhamento do Mundo")


Podemos pensar racionalmente quando percebemos em que meio estamos e por que o nosso pensamento tem a "cor" desse meio, mas que pensamos ou sentimos quando perdemos o contacto com o exterior, dentro duma espécie de placenta, seja ela mística, social ou psicotrópica?

Porque nos confrontamos, em sociedade, com seres que têm a água pelos joelhos e com outros completamente imersos. A palavra de cada um é modificada por essa circunstância. Percebemos que, no segundo caso, não estamos a lidar apenas com ideias, mas com uma visão do mundo submerso, como se o corpo todo pensasse.

Ora, esta é uma ideia próxima das teses do nosso neurocientista que acusou de erro um grande filósofo.

Deverá ser por isso que a razão falha tão clamorosamente quando tenta apaziguar dois corpos místicos, cada qual submerso no seu ectoplasma.

Não se podendo prescrever como norma higiénica o não se dever perder uma pessoa no seu elemento, dado o grande conforto afectivo dum tal estado, pode-se talvez imaginar um espaço, uma arquitectura de "despressurização" para a razão ter alguma hipótese.


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