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01/03/16

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CARTA À POESIA






Minha amada poesia, escrevo-te com a intenção de que esta minha carta chegue até ti no dia do teu aniversário. É uma carta de celebração, pois disseram-me que, Celebrar a poesia é sempre cuidar de algo muito especial para a vida humana (1). Mas é também uma carta de saudação e de agradecimento pela tua companhia, pela tua capacidade de saberes escutar, de sempre me ouvires e de, em todas as ocasiões que te procuro, teres uma palavra amiga que ameniza a solidão e alivia a fadiga da tristeza. Tu poesia que pela vida fora me tens acompanhado, lembro ainda a tua chegada nessa infância em que te ouvia dizer, Dorme meu menino a Estrela d’Alva/ já a procurei e não a vi/ se ela não vier de madrugada/ outra que eu souber será para ti (2) e os meus olhos seguiam em viagem pela noite, mas nessa idade ínfima de descoberta do mundo ainda voltaste com as estrelas para me encantar, Quando no silêncio das noites de luar/ via uma estrela pelo céu a correr/ dizia minha mãe de mãos erguidas/que te guie Deus por bem (3). Mas os anos foram passando, poesia, e houve um momento em que nos sentimos nesse crescimento que parecendo moroso e só dele demos conta quando olhamos para trás e compreendemos que a adolescência nos antecipou a chegada a adultos e de nós exigiu uma atenção para a pátria que nos viu nascer e nos reclamou na defesa de valores morais e de uma ética que colidiam com a vontade e a força de um poder bastardo que fazia da escuridão da noite, a amargura dos dias. Foi o tempo de o Meu pensamento/partiu no vento/podem prendê-lo/matá-lo não (4). Que dias esses poesia! Que teríamos feito sem ti nas noites silenciosas em que soltávamos mensagens de coragem pelas ruas. Parecíamos muitos e tão poucos éramos e a cada passo, a cada tentativa de chegar mais longe, víamos, que, Erguem-se muros em volta/ do corpo quando nos damos/ amor semeia a revolta/ que neste instante calamos (5), mas perante as adversidades, lá voltavas tu de novo poesia e trazías-nos as palavras tão limpas de Sophia, que nos projectavam para um novo assalto à fortaleza que lentamente ia apodrecendo, Porque os outros se mascaram mas tu não/ porque os outros usam a virtude/ para comprar o que não tem perdão/ porque os outros têm medo mas tu não (6). Tudo vibrava então em nosso redor, como se mil carros de combate nos acompanhassem e regressávamos ao assalto do alcáçar, troando à nossa volta a artilharia poética de Urbano, Já estreme a tirania/ já o sol amanheceu/ mil olhos tem o dragão/ há chamas de oiro no céu (7) e no fragor da batalha, surgia-nos Torga incentivando para que resistíssemos dizendo que, A honra era lutar sem esperança de vencer (8). E lutamos querida poesia, um dia atrás do outro, mesmo que somassem meses, e a cada um que soçobrava, outro logo se erguia como os Imortais de Dario e quando de forma melíflua e insidiosa, nos tentavam vencer procurando fazer-nos desistir, logo nos surgia do chão a poesia de Vinícius com o seu operário em construção, Portanto, tudo o que vês [dizia sussurrante o patrão ao operário]/ será teu se me adorares/ e, ainda mais, se abandonares/ o que te faz dizer não.(…) e o operário disse: Não! (9). Nesses dias em que os olhares se escondiam e os sonhos eram perseguidos, sem ti, estimada poesia, não teríamos conseguido alcançar essa galáxia distante onde mora a utopia. Até que por fim, Sophia pôde escrever as palavras que há tanto tempo ansiava quando aquele dia se levantou mais cedo e se podia ver que, Esta é a madrugada que eu esperava/ o dia inicial inteiro e limpo/ onde emergimos da noite e do silêncio/ e livres habitamos a substância do tempo (6). Tu sabes poesia o quanto amamos o sabor da liberdade e como sempre nos acompanhaste no cantar da nova festa. Mas esse foi também o tempo das paixões que foram chegando, e a cada uma que nascia, um sorriso se acrescentava ao vento e nesses dias de fulgor, foi Neruda que me acompanhou com a sua paixão por Albertina que se assemelhava às minhas, Em ti os rios cantam e a alma foge-me neles, Nos teus olhos lutavam as folhas do crepúsculo, Na minha terra deserta és a última rosa, Brincas todos os dias com a luz do universo (10). E assim foram caminhando os meus anos, mas apesar da tua ajuda constante, do conforto do teu auxílio, da tua presença sem abandono, tudo foi acabando nesse triste lamento de, Tanta paixão de pranto agarrada ao meu corpo (10) e terminei Abandonado como os cais na madrugada (10) nessa Canção Desesperada do poeta. Prosseguiu, entretanto, a vida nesse acumular do tempo e sem dar conta de mim tinha crescido e nesse crescimento que amadurece, surgiram os amigos. Sim esses que são, Maior que o pensamento (2). Chegaram um a um ao longo da vida, e ficaram, pois são amigos que não se podem perder, são dessas pessoas que marcam a nossa vida para sempre e sem elas nada mais seria igual. Como nos deixou escrito Eugénio, Somos amigos, somos vivos (11), dependemos da sua existência para viver. Não posso detalhar os pormenores da nossa amizade, poesia, ou pelo menos, todos esses instantes em que amparaste, me indicaste caminhos, me mostraste a outra face da lua, mas lembro como se fosse hoje, quando me disseste para saber esperar, para aguardar com paciência, a pessoa que há tanto desejava, que fosse observando na berma da estrada que um dia, mesmo que longínquo, haveria de a ver aproximar-se. Como, se não sei quem é?, perguntei-te, lembras-te? e respondeste que quando chegasse, logo saberia reconhecê-la. E assim foi, esperei na tua companhia, os anos foram passando e um dia quando parecia que já nada poderia ocorrer, chegou. Serenamente, sem pressa, como se toda a vida tivesse estado presente. Reconheci-a pelo olhar porque quando me mirava esquecia tudo (12), mas também pelo sorriso, pelo extraordinário sorriso. O sorriso foi quem abriu a porta. Era um sorriso com muita luz/lá dentro (11). Tudo parou nesse dia, o calendário recomeçou a contagem dos dias, o sol passou a nascer a norte, o mar pintou-se todo de azul e as montanhas escorregaram sossegadas para os vales, os vulcões recolheram ao centro da terra. Quanta diferença senti a partir de então à minha volta e tive de reformular todas as perguntas, renasci noutra terra, voguei pelo espaço como um satélite de Saturno. Quando consegui falar, soletrei apenas as palavras da canção da Marisa, Ainda bem que você chegou/ você que me faz feliz/ você que me faz cantar (13). Quantas árvores floriram naquela Primavera não cheguei a saber, lembro apenas que na esteira do tempo, Durou muitos anos aquele Verão e que brotou água onde tudo era secura (11). Só tu, poesia, sabes como sonhei nesses tempos desvairados, perante essa rainha que surgiu do nada e estendeu para mim os seus braços como ramos de uma árvore e encheu a minha alma de folhas verdejantes. À noite saía pelo universo e lembrava o poema dos Aqua Viva, de quien es ese caballo que va en el aire, galopando? (14) e quando o cansaço me vencia, adormecia suspenso numa praia à beira-mar mas, O rumor da sua voz entra-me pelo sono (11). Acordava nos braços do [seu] olhar (11) e lançava apelos incompreensíveis às gaivotas, perguntando, A quem falas quando iluminas de uma luz tão quente cada palavra (11). Sem bússola, sem rota, percorrendo os mares em semi-círculo, fui escrevendo nas areias de todas as ilhas de mares nunca antes navegados, Para ti, meu amor, é cada sonho/ de todas as palavras que escrever,/ cada imagem de luz e de futuro,/ cada dia dos dias que viver (15) e em cada farol de todas as falésias, o seu olhar lançava nuvens de luz coroadas de estrelas e nele se naufragou a minha invencível armada filipina, e nele ficaram meus carros de combate destroçados (16). Quando os meus rios corriam soltos para o mar e em largo delta se abriam, num abraço de infinito ardor, e o oceano flutuava com um papagaio solto ao vento, os caminhos pareceram abrir-se em largo deserto de areia solta, sem horizonte e os pontos cardeais desfocados. Soltaram-se os meus galeões e o cabo Adamastor adquiriu vida, atirando-lhes a rota para o alto mar, sem terra à vista, sem vento, apenas o silêncio, um intenso e profundo silêncio. A Helena Vasconcelos passa por mim apressada e solta a voz no ar dizendo que, A vida acontece sempre de maneira diferente e os sinais que julgamos que nos são destinados afinal dirigem-se a outra pessoa (17). Quando procurava na paisagem os restos do meu sonho, a espantosa doçura dessa rainha que chegou da longínqua terra egípcia para me acolher, encontro o Júlio Machado Vaz que me diz que, Ela já tinha ido embora antes de partir (18). Desembarquei, percorri os caminhos solitários da ilha e instalei-me na única casa habitável. Aí me visitou num dia longínquo, Mónica Baldaque que com a melancolia da sua voz me explicou que, Quando uma história entre duas pessoas se esgota, sabe bem a companhia da solidão, a poesia de cada dia que passa (19). Tell-el-Amarna já não existe. No silêncio das suas avenidas sumidas na poeira do tempo, escuto ainda como um rumor melodioso, o intenso aroma dessa rainha que nos deixou para viver noutro oásis, certamente mais luxuriante e perfeito do que havia nestes palácios agora em ruínas. Todas as manhãs, quando a madrugada anuncia o dia e a nascente se percebe o crescer da estrela brilhante que foi o seu deus, com todo o fulgor do seu vermelho rio de amarelo, limpo pacientemente as partes visíveis dos pilares que erguiam o esplendor das construções que sentiam a leveza dos seus passos e escrevo em letra desenhada para ficar gravado para todo o sempre, Transpondo os versos vieste à minha vida/ e um rio abriu-se onde era areia e dor./ Porque chegaste à hora prometida/ aqui te deixo tudo, meu amor (15). A vida é agora uma estrada em linha recta que atravessa um deserto e se dirige para um ponto no horizonte que os meus olhos cansados já não distinguem se perto ou longe. Voltou o silêncio, o qual me ensinou o poeta angolano Manuel Rui, é uma forma de falar comigo, e O silêncio está em flor/ como uma macieira branca sob a lua (20). É verdade que Não sou nada. Nunca serei nada, não posso querer ser nada. À parte isso, tenho [ainda] em mim todos os sonhos do mundo (21) e por isso A espantosa realidade das cousas [continua a ser] a minha descoberta de todos os dias (21). O mar continua ao longe na sua incansável viagem de ir e voltar e quando deixo que os meus olhos se percam no azul infinito das suas águas escuto a memória dizer, Se viesses ver-me hoje à tardinha, /a essa hora dos mágicos cansaços (16). Caminho e procuro na natureza o roteiro para uma nova utopia. Ao meu lado, tu minha estimada amiga poesia, tu que pudeste responder à pergunta de Neruda, sobre para onde vão as lágrimas que não choramos? (10), vais conversando, abrindo o livro das tuas palavras e escutando as minhas interrogações. Sigo os teus conselhos e concluo que pode haver algo mais em mim para além do nome que me identifica, Hebraico-mourisco, meu nome,/ não sei o que quer dizer./ Sei que não matas a fome/ a quem me quer conhecer./ Quem me quiser conhecer/ tem que descer mais ao fundo/ do que o nome lhe disser;/ por trás do nome, há um mundo. /Quem quiser é só descer (22). Minha amada poesia, tenho de encerrar esta carta e na despedida por hoje, deixo-te apenas o pedido que o Manuel António Pina te fez para mim, Protege-me com ele, com o teu olhar,/ dos demónios da noite e das aflições do dia,/ fala em voz alta, não deixes que adormeça,/ afasta de mim o pecado da infelicidade (23). Com um abraço eterno,

Afonso Vaz
(1) – Guilherme D’Oliveira Martins
(2) – José Afonso
(3) – Adriano Correia de Oliveira
(4) – Manuel Alegre
(5) – António Ferreira Guedes
(6) – Sophia de Mello Breyner Andersen
(7) – Urbano Tavares Rodrigues
(8) – Miguel Torga
(9) – Vinícius de Morais
(10) – Pablo Neruda
(11) – Eugénio de Andrade
(12) – Francisco Duarte Mangas em Jacarandá
(13) – Marisa Monte
(14) – Aqua Viva (?)
(15) – Carlos de Oliveira
(16) – Florbela Espanca
(17) – Helena Vasconcelos
(18) – Júlio Machado Vaz em À Beira-Rio
(19) – Mónica Baldaque em A Raiz vermelha do amor
(20) – Pierre Emmanuel
(21) – Álvaro de Campos
(22) – David Mourão Ferreira
(23) – Manuel António Pina






CARTAS DE AMOR






Terras de Malabar, 08/02/1516

Minha sempre amada, Flor de Canela,

Há vários dias que caminhamos no interior de uma floresta densa. Sentimo-nos cercados pela paisagem, pelo calor, pelas mil dificuldades que aparecem semeadas em nosso redor. A carga que transportamos, estas especiarias que ansiamos embarcar, valem este esforço e o denodo da jornada, mas aqui e ali vacilo perante a adversidade e só o receio de poder não voltar a ver-te me impelem a prosseguir até à costa. Há momentos em que a sede parece derrotar-nos e a procura de água torna-se num objectivo imediato e quando assim não é, recorro às palavras da tua carta que há pouco chegou até mim. Nos momentos de maior desânimo, sorvo-as na sofreguidão desta secura que é a tua ausência, bebo-as como a água mais transparente que nestes ribeiros pudesse nascer.

Alimento-me recordando o nosso encontro no litoral, antes de partir para tão extensa travessia por estes mares ainda tão pouco conhecidos. Caminhamos juntos ao longo da praia, lembras-te? Um ao lado do outro, porque entre nós, ninguém se afasta, quer para a frente quer para trás, vamos a par, seja qual for o nosso destino e só assim nos sentimos perfeitos. A minha mão dançou solta até se segurar no teu ombro, amparando-te, ancorando-te à felicidade que me trazias. Foi então que também a tua mão viajou, com a majestade do condor sobre as altitudes andinas, e pousou, não como ave caçadora, mas com a ternura de um beijo sem tempo, amarou lentamente, sobre a minha face. Deslizou como uma carícia com sabor a brisa leve e ali ficou até muito depois de já não estares. Vive agora comigo, na pele suavizada pela ternura que deixaste.

Quando a noite se aproxima e uma luz atenuada pela copa das árvores nos cobre quase como fantasmas, recordo-te pelo teu silêncio. Não falas, as tuas palavras escondem-se no pensamento. Talvez as receies, talvez não queiras quebrar a melodia que a tua presença faz tocar junto de mim. Falo eu para ti e falo ainda por ti, traduzo o que os teus olhos dizem sussurrando. Sim, porque comigo falas apenas com o olhar, com essa cor de canela que vejo voltar-se para as minhas frases e encontro nele, adjectivos, substantivos, advérbios e uma vez vi na parte invisível do teu olhar, a conjugação no pretérito imperfeito do verbo poder. Desorientado nestas florestas impenetráveis, resta-me o silêncio das tuas palavras e o azimute que guardo do teu olhar. O silêncio alimenta-me a alma, a magia dos teus olhos guia-me na escuridão do mundo.
Nunca desistas de me esperar.

Porque vivo
quando te vejo
Por favor
não me deixes morrer”[1]
Recebe este beijo que te envio nas asas da estrela da manhã. É para ti, apenas para ti, do sempre teu

Pero Anes  



[1] Ernesto Castillo

CRASSO

António Mesquita




"Um dia em que se perguntava a Crasso se disputaria o consulado, e em que estava disposto a responder, ele deu como resposta uma bela frase: - Sim, se for útil ao Estado, se não, não."

(Paul Veyne)

Crasso, um dos homens mais ricos de sempre e peça-chave da transformação da República romana no Império, foi lacónico como convinha. Mas a sua resposta deixava a quem o juízo sobre a sua utilidade?

A democracia decerto que não poderia atribui-se uma tal presunção, porque até alguém 'com provas dadas' pode revelar-se inútil, ou mesmo prejudicial, ao povo e aos interesses do Estado.

Como se tratava de pura retórica, a negligente resposta de Crasso só podia querer dizer que seria ele próprio o juiz em tal questão.

Digamos em abono da verdade que todos os líderes, iluminados ou não, não sabendo se serão úteis, porque não o podem saber, precisam de uma grande fé em si próprios, mesmo quando encarnam uma ideia que os transcende.

A ideia de Crasso era acrescentar ao poder do dinheiro o do poder político. Por isso o império romano tem ao longo da história inspirado todos os abusos do poder, por parte dos líderes, das organizações e, principalmente, do Estado.

É preciso ter visto Lawrence Olivier, no papel de Marcus Licinius Crassus (no 'Spartacus' de Kubrick), para ter uma ideia da arrogância patrícia, assim alcandorada na sua montanha de ouro.

Mas Spartacus crucificado (e anónimo) opôs-lhe o verdadeiro desafio.

HITLER E SALAZAR

Mário Martins
https://www.google.pt/search?q=sauda%C3%A7%C3%A3o+fascista+salazar&


“Nós não capitularemos. Nunca. Podemos perder. Mas levaremos o mundo connosco.”
Hitler, 1945

“A consequência lógica do princípio ditatorial aqui aplicado é que muitos preparem, um só resolva e faça executar com meios bastantes.”
Salazar, 1935

“(…) Para ti foi a minha Missa, dando graças a Deus pelos dons excepcionais que te concedeu, pela missão histórica que te destinou e pelo bem que tens realizado (…).”

Carta do Cardeal-Patriarca Manuel Cerejeira a Salazar, 1944

“(…) É Portugal que tomaste nas tuas mãos, contra o Mundo.”
 Cerejeira a Salazar, 1961


Que conclusões tirar da leitura de duas biografias* renomadas destes dois ditadores?

Em primeiro lugar, que em termos de objectivos, práticas e escala, pouco têm em comum o regime nazi alemão e o regime “fascista”** português. O mesmo seria tentado a dizer sobre os principais traços comportamentais dos dois ditadores, não fossem algumas características idênticas das suas personalidades: o amor de ambos, quase doentio, pela(s) Mãe(s), a falta de afecto pelo(s) Pai(s), uma relação com as mulheres talvez a roçar a misoginia (apesar dos “casos”) e, sobretudo, a crença de serem agentes da Providência.

Em segundo lugar, que havia condições nas sociedades de então favoráveis à emergência desses regimes. No caso alemão, segundo o biógrafo inglês, a sociedade estava “traumatizada por uma guerra perdida (1914-1918), pelo tumulto revolucionário, por instabilidade política, atribulações económicas e crise cultural.”; estas condições explicariam por que Hitler “passou a ser objecto de uma adulação crescente, que mais tarde foi quase incondicional, por parte das massas (…)”. Por seu turno, o historiador português considera que “dificilmente se poderia contrariar a descrição feita por (Marcelo) Caetano do Portugal herdado por Salazar”, segundo a qual “recebeu um país arruinado, dividido, convulso, desorientado, descrente nos seus destinos, intoxicado por uma política estéril.”

A ditadura portuguesa (tal como a sua parceira espanhola) haveria ainda de sobreviver uns surpreendentes 29 anos ao fim do pesadelo nazi e à afirmação das democracias europeias. E o mínimo que se pode dizer hoje é que os ventos políticos que sopram na Europa e no Mundo não são propriamente hostis a ideias e acções extremistas e ao surgimento de novos ”salvadores providenciais”.

* “HITLER – Uma biografia”, Ian Kershaw, Expresso; “SALAZAR – Uma biografia política”, Filipe Ribeiro de Meneses, Expresso.
** “(…) se o Estado Novo era ou não um regime fascista, é uma velha questão para a qual não se vislumbra desfecho (…)”, F. R. de Meneses.

A PROPÓSITO

Mário Faria



“….e que são necessárias medidas estruturais e reformas urgentes e profundas”, é um conceito ou uma mezinha? As duas coisas. E funciona assim: o levantamento sobre o funcionamento dos diferentes sectores da coisa pública ou privada, é sujeito a estudos exaustivos, feitos por técnicos idóneos e independentes, que acordam, depois de um trabalho árduo, que a coisa não vai nada bem. A cura reclama reformas estruturais, blá, blá, blá, e garante que a coisa vai endireitar, de forma sustentada. E, para toda a gente perceber, enumeram os benefícios que esperam colher dessas medidas. Avisam que pode ocorrer um efeito contrário, mas são pequenos acidentes de percurso que o tempo reverterá, com vantagens acrescidas. Se for um tema económico, não se esquecem de falar de inovação e de formação. Se for financeiro, a receita é uma medida de resolução que isolará os ativos problemáticos da instituição, tendo em vista a sua posterior liquidação, concentrando o essencial da atividade da instituição num Banco Bom devidamente capitalizado. E foi assim que se passou com o Novo Banco. Que continua a apresentar brutais prejuízos, apesar da doutrina do BCE e do controlo da troika. Soube-se que o calendário da venda do banco pode esperar até meados de Junho de 17; os despedimentos é que seguem de imediato. As reformas estruturais têm prioridade, pois claro.
…. “não há um projecto nacional o qual tem de ser, evidentemente, coordenado com o projecto europeu”  é uma forma enviesada para desfavorecer o actual acordo de governo. Ou seja: na falta de coragem política na denúncia da fragilidade do compromisso assumido pelos partidos de esquerda e que a política orçamental, segundo creem, veio exponenciar, armam-se em politólogos e desatam a reclamar pela falta de um projecto nacional que não querem porque têm medo. Estranho é trazer à colação a sua falta, quando as criaturas que o reclamam, sabem, reconhecem e apoiam que o nosso projecto deverá seguir em linha o europeu, no máximo respeito pelos tratados. O orçamental é inviolável. A restruturação da dívida é um assunto tabu. O email de uma alta funcionária do BCE, que informa sobre a decisão de entregar o Banif ao Santander é exemplar e sem direito a negociação da nossa parte. Vai ao ponto de ameaçar, com um aviso solene: “não percam tempo a tentar fazer passar outras propostas”.

Como escreve Pacheco Pereira, há uma certa tristeza nisto tudo, mas as coisas são como são.


A RENOVAÇÃO

Manuel Joaquim



Na minha rua estão a demolir um prédio que me fez recordar tempos de menino. Era ali a padaria Âncora, do Senhor José, que tinha forno de cozer o pão a lenha, com muitas padeiras que, com as suas canastras à cabeça, bem carregadas com centenas de pães, logo pela manhã,   iam vender o pão pelas  casas das pessoas. Os padeiros e forneiros trabalhavam todo o dia.  De manhã coziam sêmea, bijou e cantos. De tarde coziam carcaças, bicos de pato e velhotes. Ao sábado era o dia das regueifas, grandes e pequenas. Recordo-me de ir à padaria sozinho  buscar o pão para casa. Foi dos primeiros recados que fiz para a minha Mãe.

Quem estava no negócio da padaria todo o dia era a esposa do Senhor José, pois este quase sempre saía, ora para o café ora para outras vidas. Tinham três filhas, mais novas do que eu. Viviam  no próprio prédio no primeiro andar por cima da zona da fabricação e do forno.

Numa parte independente do prédio, com entrada própria, vivia no primeiro andar o pai da Senhora, já muito velho, que usava sempre um chapéu preto que lhe dava distinção. Andava sempre carregado com uma grande pasta de cabedal. A sua actividade era fabricar, na sua própria habitação, graxa para o calçado que depois vendia na cidade pelos engraxadores e pelos mercadores, que vendiam solas e cabedais. Um dia, ao derreter as ceras, teve um incêndio com algumas consequências. A família, a partir daí, dificultou-lhe a continuação da actividade. Pouco tempo depois faleceu.

O filho mais novo de uma das padeiras, a Madalena, que morava na Ilha das Pulgas, o Edmundo, teve como padrinhos o Senhor José e a esposa. Era um menino da minha idade. Brincávamos juntos muitas vezes, jogando a bola, ao bate-fica, às escondidas, corridas de arco e até corridas com carros de madeira, juntamente com outros meninos. A escola primária foi a mesma para os dois.

Mas o que a demolição do prédio me fez lembrar foram os tempos de brincadeira na padaria quando utilizávamos, como carros, as canastras das padeiras, uns, dentro delas, outros a empurrar, para fazer corridas ao longo do corredor que ligava o estabelecimento ao local da fabricação, junto ao forno. Acabava quando alguém dava por ela.

Recordo-me das emoções que sentia ao ver as enormes batedeiras a misturar a farinha e a bater a massa que depois ficava em repouso para levedar. O padeiro a fazer da massa grandes bolas  para meter nas máquinas de cortar para fazer os moletes, com feitio de cantos, de bijou ou de  carcaças.  Com perícia, o forneiro colocava-os nas enormes pás de madeira que as metia no forno em chamas e descarregava-os de forma a não ficarem queimados. Passado pouco tempo a porta do forno era aberta e as pás entravam novamente, agora para tirar o pão cozido que traziam um cheiro maravilhoso. Algumas vezes, ainda o pão quente, mas não a escaldar, tínhamos direito a um.

Com o aparecimento do chamado pão-quente as padarias tradicionais deixaram de ser rentáveis. Apareceu uma cooperativa de padeiros na tentativa de criar condições de  sobrevivência  para  muitos. O senhor José foi um dos primeiros a entrar para a cooperativa, mas, no tempo, os resultados não foram positivos. A Âncora deixou de cozer pão e, entretanto,  foi desactivada. Hoje a cooperativa já não existe, apesar de manter o nome. Mas o senhor José, que também já não está cá, ainda teve tempo de voltar à actividade e criar uma casa de renome à saída da cidade, que é dirigida pelas filhas.

O prédio em demolição, que se encontrava abandonado, vai dar lugar a uma construção nova. É o progresso em toda a sua extensão. É a renovação da vida.



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