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01/09/14

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ACONTECEU!

Mário Faria

(http://www.portopatrimoniomundial.com/uploads/7/5/5/5/7555524/2527059_orig.jpg?912)

Desertei, por uma semana, para fugir ao frio. O Algarve acolheu-me com sol e muita gente. Os turistas são pessoas capazes de tudo. Da autoflagelação de se queimarem brutalmente para chegar ao bronze, ao exercício físico desesperado para queimar gorduras. Correm, jogam e expõem o físico. Eles exibem-se e depilam-se como os atletas de alta competição, elas passeiam pela praia como se estivessem numa passagem de modelos, com muita pouca roupa, o que se saúda. Os meninos e as meninas mergulham de forma arriscada e põem os cabelos em pé aos pais. Os velhos exibem o caruncho e as fartas barrigas, as idosas andam demasiado ligeiro e abanam as mamocas que ficam à beira de um ataque de nervos de tanta sacudidela. Mas aguentam. Os netos animaram os dias: paródia, diabruras e muita animação. A noite era de descanso, como reclamava a exigente ocupação dos tempos diurnos. E servia para consultar a máquina, ler as notícias e utilizar o Skype, modernidades a que nos habituamos e não dispensamos. Quase todos os dias, me cruzava com o Manco. Irritava-me, solenemente. Se tem alguma deficiência, não se notava a não ser num ligeiríssimo “deixa que eu chuto“ que até lhe ficava bem. O tipo tinha lugar garantido no parque de estacionamento, uma bruta máquina e sorria de escárnio quando eu dava voltas e mais voltas para inventar um espaço para poisar o carro. No dia de regresso, teve a lata de ocupar a mesa que eu tinha marcado para o pequeno- almoço. Pateticamente, pediu desculpas e deixou-se lá ficar, tranquilamente. A mulher trocou com ele um sorriso cúmplice, enquanto recolhia os alimentos, devotamente. Normalmente, acordo de mal com o mundo e aquele golpe de mão que achei premeditado, pôs-me fulo e só recuperei a boa disposição quando cheguei ao Porto a que volto sempre com entusiasmo.

No dia seguinte á minha chegada, tive de cumprir um serviço que não me agrada: ir à peixaria levantar uma encomenda. A distância é curta e permitiu-me apurar como tinha ficado o Jardim de Arca de Água depois do brutal assalto a que foi submetido durante as festas de Nossa Senhora da Saúde. Estava limpo e sereno. Demorei alguns minutos para ouvir o silêncio e depois dei corda aos pés para tratar de realizar a tarefa para que tinha sido mandatado. Na loja, encontrei algum peixe, moscas e bastantes donas de casa que falaram bem mais do que compraram. A conversa foi animada e não escapei ao fascínio da história. O Ricardo andava caidinho pela Chinesa que tinha por companheiro o André que vivia com D. Luisinha uma quarentona em muito boa forma, esteticista, que lhe alugou um quarto e andava por ele embeiçada, apesar do desinteresse aparente do jovem. Notava-se uma ligeira tendência naquela informal assembleia popular para aceitar que a sucessão dos casos violentos que ocorreram nessa madrugada, em que a loja da Chinesa foi assaltada e arrasada e o seu companheiro brutalmente agredido quando regressava a casa, em momentos e sítios diferentes, teria sido planeado por D. Luisinha que o Ricardo executou e que completou com a tareia no André, exorbitando as suas competências porque não era curial que a mandante desse uma ordem para bater no seu menino querido daquela forma tão brutal, segundo o diagnóstico da maioria das senhoras. A dona da peixaria que comandou a sessão, muito vagarosamente, cuidou de me servir, finalmente. Embora o tema fosse delicioso, estava um pouco farto daquelas armas de guerra que disparavam rajadas de palavras tão intensas e audíveis que fizeram parar alguns transeuntes mais curiosos e juntar uns poucos que aproveitaram a paragem do autocarro para seguir a tramoia. Logo que atendido e antes de me pirar, ainda pude ouvir que a polícia tinha tomado conta da ocorrência. Regressei a casa com o peixe, os ouvidos a arder, meio surdo, curioso e com a certeza que as queixas seriam arquivadas por falta de provas o que não impediria que o tema fosse acompanhado e discutido de forma exemplar pelo ramo civil do CSI do burgo. Não poderia ter retomado a rotina diária da melhor forma na minha aldeia de Paranhos desta mui nobre e sempre leal cidade do Porto.

A PAIXÃO DE MANDAR

António Mesquita

" A cidade onde aqueles que devem mandar estão menos desejosos de mandar é melhor e mais pacífica, e sucede o contrário com aquela onde esses têm a disposição contrária.

"A República" (Platão)

Isto é verdade, apesar de alguns (nos quais me incluo) defenderem a necessidade de homens ambiciosos para pôrem a sua energia ao serviço do Estado e da colectividade, sem se darem conta, as mais das vezes, que desempenham o papel de instrumentos do que à falta de melhor poderíamos chamar de Providência. Esta palavra é preferível à palavra História, porque não se corre o risco de pressupor que tem leis e de teorizar sobre elas.

O mesmo se passa com as outras paixões, as quais, segundo Descartes e Spinoza, podem sempre ser conduzidas para um fim útil. Por isso, homens relutantes ou equânimes nunca iniciariam, por exemplo, um caso de amor. O prazer associado a essa paixão tem 'garantido' a sobrevivência da espécie, mas à medida que aprofundamos a análise dos nossos 'raptos amorosos', e lhes encontramos substitutos mais controláveis e conversíveis em 'bitcoins', menos a 'astúcia' da Providência tem hipóteses.

Já que alguns têm, pois, de mandar que o façam de bom-grado, embora sob controlo. É sempre melhor esperar o que é mais natural que aconteça do que confiar nas excepções. A tristeza é também uma paixão, mas anémica. E quem faria uma coisa contra a sua disposição natural sem alguma tristeza? Talvez por isso a direcção do Estado fosse, antigamente, confiada aos anciões. A reviravolta dos tempos modernos foi de tal ordem que, hoje, um conselho de anciões estaria talvez ainda mais dependente da tecnocracia do que os governos que conhecemos.

Por isso a afirmação platónica só é verdadeira se nos referirmos ao passado (distante).

VARIAÇÕES SOBRE UM TEMA DE EINSTEIN

 

Mário Martins

 

“Sei que, filosoficamente, um assassino não tem culpa, mas não gostaria de tomar chá com ele.”

Albert Einstein

Quando tropecei nesta frase do célebre cientista percebi que, apesar do tom coloquial, ela encerrava questões filosóficas essenciais. Desde logo a questão da compreensão. Einstein não diz que um assassino não tem culpa, mas sim que, filosoficamente, não tem culpa. Isso quer dizer que pelo critério do saber mais profundo que, etimologicamente, o termo filosofia significa, um assassino não tem culpa. Então por que, por este critério, um assassino não tem culpa? Porque, respondo eu, os seres humanos, na medida em que são filhos do processo natural de existência, não são responsáveis pela sua natureza. Logo não podem ser os autores, mas apenas agentes do bem e do mal no mundo. E não de todo o bem e de todo o mal. Um pôr do sol ou um cancro que faz sofrer e morrer uma criança ocorrem sem intervenção humana. É certo que as religiões em geral e a mitologia judaico-cristã em particular, afirmam o contrário, quer dizer, que o mundo apenas conheceria o bem, não fosse o pecado original dos primeiros humanos. Convirá, no entanto, contextualizar. O papel da religião não é compreender mas o de nos consolar perante as misteriosas condições da existência. E para garantir a sua outra função de força moralizadora, compreende-se que coloque o Divino ou a Natureza a salvo da responsabilidade pelo mal do mundo. Outra questão filosófica perturbadora decorrente da afirmação de Einstein, é a da eventual impossibilidade de aplicação política da verdade filosófica. Filosoficamente, se um assassino não tem culpa, não deve ser punido, mas em sociedade, quer dizer, politicamente, não passa pela cabeça de ninguém que não seja castigado. Daí a justeza da conhecida afirmação de Bismarck de que a política é a arte do possível.

 

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