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01/08/12

ARMADILHA SEMÂNTICA

 Mário Martins

siliconangle.com


Se é verdade que não há democracia sem partidos políticos livres, tal permite concluir que se há partidos políticos livres logo há democracia?

Julgo que se pode dizer que em Portugal, desde o 25 de Abril, a democracia nunca foi tão formal e que a política nunca desceu tão baixo.

Desde logo, o povo, tecnicamente chamado eleitorado, não elege deputados que o representem mas realmente os chefes partidários da sua preferência. Estes, a seguir, mandam na maioria dos deputados que antes haviam escolhido e aqueles que tiverem arrecadado a maioria de votos constituem o governo a seu bel-prazer.

Depois, os partidos a quem o eleitorado vem atribuindo (por manipulação e contra o seu interesse, na visão da oposição de esquerda) sistematicamente a maioria de votos, apropriadamente chamados de “bloco central dos interesses”, sentam-se “à mesa do orçamento” a distribuírem benesses pelos correligionários e, pior do que isso, aprisionaram o Estado nas malhas dos interesses privados e corporativos.

Tradicionalmente, o alvo privilegiado da crítica e do protesto políticos é o governo, mas os supostos representantes do povo estão na Assembleia da República. É lá que se arquitecta ou, pelo menos, se aprova a estrutura e funcionamento do estado, o estatuto do deputado, que se suporta ou não o governo, que se vigia ou não os actos governativos, que se fazem ou não boas leis. Este último aspecto, o da lei, sendo crucial num estado que se pretende de direito democrático, tem sido, infelizmente, o palco onde se urde a teia em que o interesse particular prevalece sobre o público e se articula a justiça especial para ricos e poderosos.

A má fama e o desprezo de que goza a classe política que há muitos anos se instalou no poder (mas para a qual, pelo visto, o eleitorado não reconheceu ainda alternativa) são, para além das honrosas excepções, inteiramente merecidos, o que não quer dizer que a maioria dos políticos não seja séria, apenas que a profissionalização da política, a família e as contas mensais para pagar explicam a obediência a uma minoria venal, “chico-esperta” e desrespeitadora da coisa pública.

Eu não sei qual é a saída política para este estado de coisas (para além de achar que tal passará por uma intervenção crescente de movimentos cívicos extra-partidários e por uma opinião pública mais exigente), mas talvez fosse útil começar por considerar uma armadilha semântica a afirmação corrente de que vivemos em democracia política ou num estado de direito democrático. Se os partidos do “arco governativo” detêm, de facto, todo o poder político (actualmente, o que sobra do regime de tutela dos credores estrangeiros), então vivemos, como alguns comentadores já vêm reconhecendo, numa partidocracia. Esta clarificação semântica teria a virtude de abrir caminho para novos projectos ou ajustes democráticos.    

ENTRE A MÚSICA E A HISTÓRIA

Alcino Silva

Persépolis




A noite divide-me entre o estar e o não estar, entre o ser e o não ser, entre a dúvida e a incerteza. Entre a angústia destas sombras, olho a brancura limpa das paredes rasgadas pelas colunas de pedra polida e direita e tanto alinhamento perturba-me. Neste rigor arquitectónico talvez gostasse de encontrar o acaso, uma pedra desacertada, uma parede sem esquadria. No atropelo da imaginação, a música chega-se a mim, sonolenta, pausada, adquirindo força nas gargantas do canto e no toque dos instrumentos. Um crescendo de sons abafa-se na leveza da brisa de uma flauta e é esta que me leva em sonhos para o crescente fértil, para a planície aqueménida para as margens azuis do golfo. A poeira do tempo esvoaça sobre as ruínas da história. O esplendor de persépolis subjugado e a beleza das suas estruturas arquitectónicas arruinadas numa noite orgíaca das tropas alexandrinas. Como foi possível o rei dos reis sucumbir derrotado nas terras de gaugamela? E possível foi ainda que o macedónio permitisse que a sua soldadesca eufórica incendiasse a mais bela das cidades quase nas margens do Tigre, erguendo as suas majestosas colunas sobre a vastidão das terras milenares que presenciaram o nascimento da escrita. A doçura do cravo traz-me de novo até às paredes seculares da matriz, tenta agarrar-me para que o pensamento não voe, mas o canto ergue-se triunfante e num momento de serenidade, a flauta aflora ainda, trepando de asas abertas sobre a vida e de novo estou entre o pó das recordações, da devastação que conduziu à derrota o império persa, que viu desaparecer essa guarnição pretoriana dos imortais. A gloriosa caminhada do general que fundou alexandria aparece manchada nessa noite de dionisíaca tempestade e nem a princesa que os seus braços arrebataram foi capaz de lhe restituir a razão que nessa tarde crepuscular haveria de ver as chamas subirem aos céus perante a ira dos deuses. Num dobrar de cânticos, numa mistura de sons, a história confunde-se e a mais bela das egípcias rainhas surge nessa escuridão iluminada pelas chamas. Porque regressará, nefertiti a tão devastadora noite? Certamente procura com a sua beleza afastar a irracionalidade humana, mas tudo é inútil perante a tragédia. Amanhece sobre as terras ainda férteis da mesopotâmia, o vento, também ele cansado pela violência dos homens arrasta a terra em poeira envolvendo as colunas de um passado que parece teimar em viver. Os sons do violino parecem chamar-me para esse drama que sempre olhamos tristes quando nos debruçamos sobre o pretérito. Há uma mistura de grandeza e tragédia na passagem do poder pelo espaço terreno e nem os deuses, os antigos e os novos parecem possuir forças pala aplacar essa miséria cobiçosa que transportamos no ventre guloso da riqueza. A cidade dos persas jaz entre os destroços dos seus palácios e apenas posso contemplar o que foi na esperança de que o que vier a ser não tenha este fim. Mistura-se agora a flauta e o canto com o violino tangendo triste e vagaroso. Regresso às pedras unidas e firmes desta igreja, deixo-me embrulhar pela ordem das paredes, pela perfeição das formas, pela aparência geométrica, mas ainda assim o pensamento escapa-se de mim, embrulhado na leveza desta música, procurando no passado longínquo o que resta da beleza humana.
        

UMA MENSAGEM E UMA FORMA DE DOR


Cristóvão Sá-Pimenta

jsilvarodrigues.blogspot.com




Fui às tuas palavras procurar o desespero.

Nada encontrei. E que bom. Parece, de facto, não valer a pena gastar energias amaldiçoando o tempo, as acções ou omissões que já foram.

A urgência manda as nossas reacções. Reacções de desconforto, de revolta, também de incapacidade para lutar contra o que parece irremediável.

Horrorizo-me ao ver e recordar as suas peles caídas e não poder contrariar a visão de um corpo em decadência. Temos a mania que somos fortes. Senti-me traído pela emoção quando testemunhei o vosso forte abraço  que infelizmente não era só a manifestação da felicidade do reencontro. Senti nele a urgência de um tempo que se quer recuperar, esquecendo pecados antigos. Vindo ao de cima afectos que nos ficam sempre em reserva.

Já não me aborrece a lentidão do seu discurso. A minha paciência alargou-se bastante e muito me agradou ouvir a sua voz. Prolonga-nos a memória de tempos e vivências que estão lá atrás. Contive-me na ajuda para que concluísse o seu relato e palavras. Palavras que se perdiam no espaço procurando razão para muito ainda viver. Viver que parece não ter consciência, ou não querer ter, que o fim poderá estar perto. Estranhamente senti estar a fazer um último passeio. Comi-lhe as palavras.

Fui conduzido ao meu pai quando alegremente me confessava o seu contentamento em levá-lo até aos Pilotos ou Palmeiras, como gostava de dizer. Lembrou as horas aí passadas de cana na mão, entretido com a vida dos peixinhos … para lhes dar fim. Nesse dia, em  princípio de noite quente de fim de Verão, queixava-se da falta de ar e de quanto o bicho o minava. E a impotência a apoderar-se de mim. E mais uma voltinha de carro, com os vidros abertos, para ele sentir a brisa da noite a tomar-lhe o lugar do que lhe anunciava o mau presságio. Eu a saber e o desespero a crescer.   

De formas diferentes temos já no nosso corpo as marcas inexoráveis de alguma decadência. Assustei-me ontem quando, só comigo, verbalizaste e adivinhaste o seu rápido fim de linha. Custa-me acreditar. Apesar de tudo, se urgentemente  for para a casa dos horrores,  acredito que o teremos por muito mais  tempo. Mas, confesso, fraco consolo este tão impregnado de ausência de convicção.  E a razão dita-nos estas incongruências.

Sinto termos vivenciado ontem a mais profunda expressão de solidariedade, mas também a confissão da nossa incapacidade. Também de fragilidade.

Hoje já lhe falei. Disse-me ter chegado estourado a casa. Sentou-se e adormeceu logo. Queixa-se somente da constipação… anda fanhoso. De dores…pouco me fala. Só das cólicas. Ontem, durante o tempo que esteve connosco, não lhe vi nem adivinhei um esgar de dor. Casmurrice, afirmação de uma força bruta, mesmo animal que sempre lhe conhecemos. Mas também sempre um menino grande. 

Acho, cada vez mais, que só temos e devemos falar de Vida. E do seu oposto não. Sabemos ser uma consequência da sua existência. Tolhe-nos e ficamos “fodidinhos” é com a f.d.p. da doença. E quedamo-nos encolhidos à procura do ninho de quem nos conforte e acolha.

E ontem foi mais um dia  “…do resto das nossa vidas”. Por sinal bem lixado. Mas, também, apesar de tudo um dia a não esquecer, pelas razões que quisermos inventar, principalmente daquelas que nos dão conforto, contentamento e alegria. É pela recordação do melhor que está lá para trás que temos de preservar a memória. Tudo o resto nada vale. 

Tinha de partilhar contigo isto.

Um forte abraço.

"A OBRA INTANGÍVEL DO DR.OLIVEIRA SALAZAR" DE CUNHA LEAL

Manuel Joaquim


Cunha Leal no uso da palavra no funeral de António Granjo


Nuno Coelho, “que de colega rapidamente passou a AMIGO com letra grande” utilizando palavras suas, ofereceu-me um livro, que tinha guardado, quase religiosamente, durante muitos anos. “A obra intangível do Dr. Oliveira Salazar”, edição de 1930, cujo autor e editor, Cunha Leal, tinha sido do tempo do Senhor seu Pai, na Universidade de Coimbra.

Não me surpreendeu o título e o autor já o conhecia por ter sido citado em escritos e em intervenções de Fernando Barbosa de Oliveira no Sindicato dos Profissionais de Seguros, antes do 25 de Abril de 1974. Tenho livros dele mas não este. 

Cunha Leal não foi uma pessoa vulgar. Nasceu em 1888, foi oficial do Exército, engenheiro militar e civil e de minas, serviu em Angola e participou em França na Grande Guerra. Foi director de jornais e de revistas, participou na vida de várias organizações partidárias do início da República, foi deputado, Presidente do Conselho de Ministros, Ministro das Finanças e Reitor da Universidade de Coimbra. Foi governador do Banco de Angola, do Banco Nacional Ultramarino, delegado de Portugal à Conferência Económica Internacional de Genebra e membro do Comité Consultivo da Organização Económica da Sociedade das Nações. A partir de 1923 foi um dos defensores e artífices de um golpe militar, para restaurar a ordem pública, o que veio a acontecer com o 28 de Maio de 1926. Fez parte do grupo de pessoas influentes na ditadura que propôs a Carmona a nomeação de Salazar para a pasta das Finanças. Esteve preso e deportado. Faleceu em 1970.

Após quatro anos de ditadura, Cunha Leal entra em ruptura com a mesma e com a política financeira de Salazar e vem a público criticá-la, precisamente, com a edição deste livro que me foi oferecido.

Não rejeitando nenhuma das responsabilidades pela instauração da ditadura em 1926, defendeu-a perante “o espectáculo confrangedor duma política, que fôra deixando caír em pedaços o nobre idealismo da propaganda republicana através de infindáveis conflitos de baixos interesses materiais, observando o péssimo arranjo das forças partidárias, a sua falta de unidade e coesão, a vetustez e insuficiência dos seus programas, assistindo à progressão diária da decadência do parlamentarismo, recebendo, constantemente, de todos os pontos do país, queixumes desolados contra as prepotências dum caciquismo aviltante, herdado da monarquia… e que, assim, a bem do regime e da democracia, para que ambos pudessem entrar em caminho de progresso, era necessário proceder, anti-democràticamente, de cima para baixo e não de baixo para cima.” 

Enquanto alguns dos situacionistas e ele próprio, defendiam uma ditadura limitada no tempo, com vista a proporcionar a reorganização partidária, a organização dos serviços públicos, a extinção do deficit orçamental através da restrição das despesas públicas e do aumento progressivo e moderado das receitas fiscais, a estimular a economia para a concentração, para a produção em massa, para o investimento em equipamentos e métodos de trabalho, executando o restauro das vias de comunicação, dos centros urbanos e “com muita moderação, uma política de grandes obras de fomento a cuja realização muitas vezes se segue, sem largas compensações económicas, um período de crise financeira” e “proporcionar ao domínio colonial português condições de pleno desenvolvimento”.

Outros defendiam, desde logo, a imposição “às massas confundidas e hesitantes que constituem a grande maioria de todas as classes”, uma outra tese:

“A ditadura contém em si própria uma franca negação da democracia e pretende instaurar, não temporária e episodicamente, mas sim definitivamente, o domínio de poucos sobre todos;

A solução de todos os problemas nacionais é a consequência lógica da instauração dum regime político de autoridade ilimitada e sem fiscalização, devendo, assim, preocupar-nos muito menos a evolução financeira e económica da Nação do que a manutenção indefinida do princípio-base da ditadura.

Isto, traduzido em vulgata, quer dizer, pura e simplesmente, que, para os partidários de tão estranha concepção, ditadura pode ser sinónimo de tudo menos de República.”

Para Cunha Leal era “ incompreensível, por absurdo, que a instauração, com foros de permanência, dum sistema de governo que repudia, formalmente, os princípios essenciais da Democracia e da República, não signifique a morte das instituições políticas, que, tendo sido recebidas com alvoroço pela Nação, em 5 de Outubro de 1910, criaram, mau grado muitas amarguras e desilusões, tão fundas raízes no coração do povo, que não tem sido possível, até hoje, destruí-las, nem mesmo pela violência, nem mesmo pela traição.” 

Segundo a sua opinião, a ditadura resultou da conjugação de duas tendências, “uma nitidamente republicana, outra insofismavelmente monárquica”. E a sua duração seria até tornar viável a proclamação do anterior regime, a monarquia, etiquetando o Estado com uma falsa etiqueta republicana, entregando todos os lugares chave do Estado aos seus inimigos, comprando “cumplicidades e perverter consciências, encher estômagos e despejar os cofres do Estado.” Daí a ditadura ter tido sempre o apoio dos monárquicos.
  
Cunha Leal considera que toda a política financeira dos primeiros tempos da ditadura teve como objectivo “durar” e, para isso, “comprar”, como acima se diz, mas refere que a situação financeira não sendo boa, não podia considerar-se desesperada. Compara-a com a que resultou da “aplicação durante um ano duma terapêutica reclamada com tanto ruído nos arraiais da ditadura“, utilizando, para o efeito, os dados oficiais do ministério das Finanças dos anos económicos de 1925-1926 e 1926-1927, o último do período constitucional e o primeiro do regime de ilegalidade.

Expurgando das contas as verbas que poderiam não permitir uma rigorosa comparação entre os anos económicos, chega “à conclusão de que o acréscimo das despesas públicas” atinge “uma soma brutal, bem própria para nos produzir calafrios”.

Para isso contribuiu as despesas com os ministérios da Marinha e da Guerra, “os dois em que melhor deve estar vincada a garra dos ideais do 28 de Maio”. A ditadura “para poder durar, julgou-se no direito de alargar, sobretudo em Lisboa, os efectivos militares, de forma a constituir uma guarda pretoriana que lhe substitua o apoio das massas populares do País”.

Mas para além dessas e de outras despesas chegou a vez aos “elementos dessa plutocracia insaciável, que por aí se arrasta e que há-de acabar por esburgar, inteiramente os ossos da nação”. Os cofres da Caixa Geral de Depósitos abriram-se para subsídios, empréstimos, avales do Estado, “uma centena de milhares de contos levou sumiço…”. “…O Estado para agradar a certos elementos da alta finança, realizava péssimas operações…” “O mas desta política de corrupção consistiu no agravamento progressivo do “deficit” orçamental e das condições de tesouraria.”

“O deficit de gerência, numa cavalgada desordenada, ia avançando por aí fora até atingir o valor espantoso de 641.601 contos! Ao princípio, o fenómeno não causou sérias preocupações, nem aos corruptores, nem aos corruptos desta tragédia nacional. É que se esperava, com cega convicção, que do céu caísse aos trambolhões o maná dum grande empréstimo externo – 12 ou mais milhões de libras….Depois de laboriosas negociações, os prestamistas estrangeiros, dando um pontapé na nossa dignidade nacional, nos empurraram, cinicamente, para a cilada de Genebra, quem se não lembra, igualmente, do ar de indignada cólera com que foram recebidos pelos intransigentes da ditadura os meus protestos e as minhas observações?... Duvidar do empréstimo, protestar contra o rebaixamento, que, para a Nação, resultava da ida a Genebra com o fim de solicitar, de escudela na mão, a esmola dum caldo requentado, segundo esta gentinha, manifesta falta de patriotismo! A ditadura identificou-se, de facto, com esta atitude governativa… Seguiu-se o varejo da via portuguesa por parte dos peritos de Genebra, que se aprestavam já para administradores da massa falida, até que se entrou no último acto da farsa: - a discussão das cláusulas do empréstimo com o “comité financeiro” da Sociedade das Nações. O brio do General Ivens Ferraz, impedindo-o, à última hora, de subscrever as condições humilhantes apresentadas como indispensável para que o conclave de Genebra concedesse ao empréstimo o patrocínio solicitado, poupou a Portugal a efectivação dum acto que ficaria sendo, sem dúvida, o mais vergonhoso e irremediável da sua história contemporânea”. "As consequências não se fizeram esperar, com graves perturbações na vida económica e financeira do País provocando perturbações sérias nos 'marechais da ditadura'. Descobriram, então, o Dr. Oliveira Salazar.”

Em Abril de 1928 foi-lhe entregue o cargo de Ministro das Finanças em condições de absoluta subordinação, mesmo do próprio Presidente de Ministério. “Todos se curvaram perante as suas imposições; e a Reforma Orçamental, publicada logo nos primeiros dias de Maio de 1928, consagrava, oficialmente, a instituição duma verdadeira ditadura dentro da ditadura.”

Cunha Leal  transcreve do jornal O Século, uma entrevista dada por Salazar aos representantes dos jornais de Lisboa em 9 de Maio de 1928: “O estado actual do país obriga-me a proceder de forma que, à primeira vista, poderei tornar-me incompreendido. Estou seguindo uma política contrária à minha orientação. Apregoei a redução das despesas e apareço a aumentar impostos; disse que os funcionários estão mal pagos, e, afinal, venho exigir-lhes novos sacrifícios. Mas isto explica-se porque o aumento de impostos tem que fazer-se imediatamente….” 
 
Cunha Leal denuncia que Salazar, antes que os outros o façam, “organiza o processo das suas incoerências, baralhando e confundindo ideias, porque umas vezes sustenta que, ao contrário do que apregoara fora do Governo, a sua política se fundamenta muito mais em aumentar as receitas do que reduzir os gastos, outras vezes proclama que a “diminuição de despesas públicas se torna indispensável””. E afirma que são “hesitações dum homem que quer atingir os fins sem se importar, grandemente, com os meios, e que, para ir depressa, acaba por lançar mão dos meios que são mais fáceis, pondo de parte aqueles que seriam melhores!”. Uma outra parte do discurso de Salazar, onde este tenta defender-se, Cunha Leal transcreve:    ”A sua política pode ser atacada, alegando-se que ele olha apenas pelas finanças públicas sem cuidar da economia e do fomento do país. De facto, é esse, de momento, o seu ponto fraco. Depois da realização dos sacrifícios, virá, porém, o crédito e, com ele, a possibilidade de realização dum largo plano de fomento” Perante os resultados já visíveis, Cunha Leal considera que “a política financeira do Dr. Salazar é, antes, acto de fé que criação da inteligência.” E recorda a história do cavalo do inglês que foi, precisamente, morrer quando estava quase desabituado de comer, não tendo assim, o dono conseguido tirar proveito da aquisição, por parte do cavalo, de tão precioso hábito.

Utilizando publicações internacionais, como é o caso do Memorandum da Sociedade das Nações, as informações da Direcção Geral da Contabilidade Pública, e métodos utilizados pelo Comité Financeiro da Sociedade das Nações, elabora mapas onde compara rubricas de despesas da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte, Itália, Portugal, Jugoslávia, França, Espanha, Roménia, Checoslováquia e Hungria, chega às seguintes conclusões:

“1º -  Portugal, que não possui exército eficiente, dentro dos limites da sua capacidade, e que nem sequer tem uma sombra da esquadra de guerra, é um daqueles países da Europa cujo orçamento mais sobrecarregado é pelas despesas com a defesa nacional.

2º - A posição portuguesa, no tocante à proporção dos encargos com a dívida pública e pensões para as despesas totais, é muito melhor do que a da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte, França e mesmo Itália, sendo proximamente equivalente à dos outros países enumerados no quadro anterior.

3º - Portugal, país de economia rudimentar, quási sem indústria e com agricultura rotineira, é, depois da Espanha, de entre os nove países estudados, aquele em que as despesas com a administração económica mais avultam.

4º - Portugal é, de entre todos estes, o país que tem administração financeira relativamente mais cara.

5º - Nesse grupo de nações, Portugal ocupa o segundo lugar na escala decrescente daqueles que, em proporção, maiores gastos realizam com os três capítulos seguintes, somados: órgãos supremos do governo e administração geral; administração económica; administração financeira.

6º - Portugal e outros países com grandes percentagens de analfabetos, são, precisamente, os que maiores dispêndios fazem com a instrução pública.

7º - Portugal goza do benefício de não ter, como sucede com outros países da Europa, o seu orçamento sobrecarregado com despesas de administração social que correspondem a uma crise de desemprego assustadora.”

Perante o estudo e as conclusões a que chegou, Cunha Leal pergunta se na realidade a administração portuguesa sofreu sob a “acção da varinha mágica do Dr. Oliveira Salazar, aquela transformação profunda que os seus incondicionais admiradores apregoam, por aí, aos quatro ventos.” E responde que, na verdade, nenhuma alteração sensível se operou. Que a administração financeira, na qual superintende o “Super-Homem de Santa Comba continua a custar rios injustificados de dinheiros”. Depois de fazer considerações sobre a situação da economia, da instrução, da loucura dos gastos militares diz que “Até hoje, ninguém, em Portugal, dispôs de maior força e de mais lata autoridade que o Dr. Oliveira Salazar, para o efeito de se abalançar à realização desta tarefa que, contudo, poderia, por si só, fazer a reputação dum ministro verdadeiramente excepcional.
 
Com certa prudência, o Dr. Oliveira Salazar guardou-se, porém, de conquistar a glória por este meio e preferiu usurpá-la, fazendo um desenfreado auto-reclame, deixando correr, livremente, a torrente caudalosa dos elogios interessados e tapando a boca aos discordantes. 

Como já atrás ficou dito, a obra do Dr. Oliveira Salazar, no capítulo de despesas, é, aparte pequenas reduções efectuadas a trouxe-mouxe, a cristalização das loucuras dispendiosíssimas duma ditadura sem ciência, nem consciência, e, dum modo geral, a cristalização dos erros acumulados e da péssima organização da administração pública portuguesa.

O dr. Oliveira Salazar funciona como um ditador estático, não como um ditador dinâmico, trava, não excita, cria atritos, não provoca movimento. Eis, em meu entender, a sua melhor definição.”

Se não foi pela redução das despesas que o dr. Oliveira Salazar obteve “o tão apregoado milagre financeiro”, foi, necessariamente, pelo aumento das receitas.

Cunha Leal, utilizando o mesmo método que utilizou no estudo da evolução das despesas, conclui que foi através da caça exasperada ao contribuinte, “ que pôde verificar, por experiencia própria, quão cara lhe fica a felicidade prometida pelos homens do 28 de Maio”, com a esmagadora e inconcebível progressão dos impostos, como demonstra nos mapas que apresenta.

E, assim, “Desorganiza-se, a pouco e pouco, a vida económica nacional, anda a miséria rondando à volta de muitos lares, sentem-se os sinais precursores das grandes catástrofes. “ 
   
Cunha Leal, conhecendo bem Salazar, comenta as suas concepções económicas, considera-o bom contabilista para comezinhos arranjos orçamentais, mas que não vê dois palmos adiante do nariz em matéria de política económica. E refere que ele sustenta o indispensável “dr. Quirino de Jesus, apesar de tudo o que se sabe e que ele também não ignora, porque precisa dele para fazer face às suas insuficiências. O pior é que o mentor nem sempre fala como S. João Crisóstomo, o 'Boca d’Ouro'”

Cunha Leal denuncia que quase todas as iniciativas legislativas de carácter económico do dr. Oliveira Salazar “têm a marca do dr. Quirino de Jesus – mestre, em vária ciência, do cómodo e dócil discípulo que é o dr. Oliveira Salazar”, como também denuncia aquilo a que ele chama “das malas-artes do seu afamado Mentor” com a questão sacarina da Madeira. 

Quirino de Jesus foi um advogado, que nos finais da monarquia e nos inícios da república se destacou na defesa pública das posições da Igreja. Foi deputado às cortes e teve influência importante na formação política do salazarismo, sendo identificado como inspirador político de Salazar.

O livro de Cunhal Leal é particularmente importante pela forma como desmistifica o desempenho de Salazar como ministro das Finanças. E se ainda ouvimos, de alguns, que o trabalho de Salazar nas Finanças foi importante, é o resultado da ignorância e da “torrente caudalosa dos elogios interessados e do tapar da boca dos discordantes.” É curioso verificar que este livro não consta na bibliografia de Cunha Leal, publicada na Wikipédia.  
   
Cunha Leal não se limita a desmontar, peça por peça, a política financeira de Salazar. Caracteriza, também, o seu carácter, a sua personalidade e os seus valores. É um retrato que as pessoas conhecedoras   identificam como verdadeiro e que se mantém imutável ao longo de toda a sua vida. 
   
É muito interessante conhecer a antecipação política, económica e social que Cunha Leal faz para o mundo e para a europa resultante da Grande Guerra. Considera que Portugal continua a não fazer nada como o costume e que os portugueses limitam-se a gozar o seu esplêndido clima, que entoam hossanas ao Altíssimo e, que, quando as desgraças do presente os afligem em demasia, consolam-se, lembrando-se de Vasco da Gama, de Afonso de Albuquerque, de Camões e de todas as glórias nacionais. Defende profundas modificações nas estruturas industriais e económicas, na organização do estado e nas condições de crédito.

Mas nada disto aconteceu. A ditadura transformou-se em regime fascista que perdurou durante 48 longos anos, com todas as terríveis consequências para a esmagadora maioria da população portuguesa. Foi o resultado dos situacionistas do regime terem sido amamentados no leite da monarquia.

Ler o livro leva-nos a recordar a evolução política em Portugal desde 1976. A reconstituição dos monopólios, das grandes fortunas, a reconquista dos lugares chave da economia e da sociedade pelas pessoas do regime fascista, a abdicação da soberania e do património pelos empréstimos externos, a mesma linguagem que era usada naquela época contra os que hoje contestam essa política e que defendem políticas alternativas. Os argumentos que os actuais governantes utilizam são iguais aos que Salazar usava. O exemplo do não aumento de impostos e depois o seu aumento quando chegam ao governo  é elucidativo. 

Isto é o resultado dos dirigentes políticos que nos têm governado terem sido amamentados no  leite do fascismo.


QUANDO SE NAVEGA SEM DESTINO...

Mário Faria

yachtyakka.co.nz



Fiquei muito chocado por ter ouvido um professor universitário desta cidade, integrado num painel que discutia o comportamento do governo durante o primeiro ano do seu exercício, a dizer que  “… se os salários e pensões representam cerca de 77% da despesa pública, então reduzir a despesa tem de passar obrigatoriamente pelo corte, designadamente dos subsídios de Férias e de Natal dos funcionários públicos e dos pensionistas…. Não fiquei nada surpreendido com a defesa da norma, fiquei, sim, muito chocado pela forma : um  discurso duro, categórico cheio de prazer pela ausência de complacência. Uma espécie de Dexter, feito serial killer da palavra, para se vingar dos crimes que os improdutivos e os inactivos representam para o sistema.

Apesar do tribunal constitucional ter chumbado a lei, vamos ter em 2013 mais impostos, desemprego e recessão. Desde 2002 que vivemos sob o jugo do pacto de estabilidade. Já na altura o tema foi objecto de intensa discussão. Hoje, poderemos perceber melhor, a justeza de algumas intervenções que defendiam que há vida para além da austeridade.

1) “…A Europa vive sobressaltada pelo fantasma do Pacto de Estabilidade, qual camisa de forças que neutraliza todo e qualquer esforço de revitalização económica....Será um erro centrar os esforços de uma governação no equilíbrio das contas públicas enquanto a economia definha a olhos vistos, as empresas despedem e reduzem custos até ao limite e as pessoas contam os tostões....” (Eduardo Silva Melo, Diário Económico, Julho de 2002)

2) ”…Os mercados não funcionam tão perfeitamente como afirmam os modelos simplistas baseados nos postulados da concorrência perfeita…. hoje a mundialização não funciona.  Não funciona para os pobres do mundo. Não funciona para o meio ambiente. Não funciona para a estabilidade da economia mundial…”  (Joseph E.Stiglitz , Prémio Novel da Economia,  Público,  Abril de 2002).

3) ” ....As dívidas ao fisco representam em Portugal 10 por cento do PIB. Curioso número, tendo em conta que o défice orçamental de 2001, na sua leitura mais desvantajosa, anda pelos 4 por cento. Quer isto dizer que não seria necessário que tantos apertassem o cinto. Bastaria que alguns pagassem o que devem.....” (Paulo Guerra, O Diário Económico,  Julho de 2002)

4) “… O pacto de estabilidade é um instrumento de governação económico grosseiro e deverá ser substituído, no momento oportuno, por qualquer coisa de mais inteligente. ….”  (Pascal Lamy ,Comissário Europeu para o Comércio, Público, Outubro  2002)

5) “...Esta derrapagem espectacular das finanças públicas não constitui por isso um erro de política económica, pois ela está paradoxalmente justificada pela gravidade da situação económica mundial ocultada por hipóteses de crescimento irrealistas, pois uma política orçamental de regresso ao equilíbrio, pelos seus efeitos deflacionistas, seria totalmente contraprodutiva, incluindo no plano das finanças públicas, porque destruirá mais receitas fiscais do que reduzirá as despesas ….”  (N.Baverez, economista, Público, Outubro  2002)

6) …Sem rodeios, a verdade nua e crua é só uma : o Governo não tem ao seu dispor instrumentos eficazes, aquelas armas clássicas da política económica para reverter uma situação recessiva. Estamos absolutamente à mercê da conjuntura internacional, quando a crise internacional parece ser mais sistémica e menos conjuntural.....  ”, (Sérgio Figueiredo, Público, Agosto de 2002)

A dívida pública atingiu 111,71% do PIB. Não há receitas milagrosas. E há saída para a crise? Valente Leite, economista e ex-deputado do PS, defende que:

Só há uma solução para a crise: a reestruturação da dívida;

A introdução do escudo (com o euro) daria ao Governo um instrumento para poder ter défices;

Seria criada uma nova aplicação para as poupanças dos portugueses, que lhes garanta a remuneração em euros e uma actualização do valor poupado;

A moeda usada a nível interno seria o Escudo, não convertível externamente, e em que um escudo seria igual a um euro, só para transacções internas.

Uma Europa a duas velocidades, um país com duas moedas. Que mais nos acontecerá? Estamos reféns da Europa que continua a navegar sem destino e, quando assim acontece, nenhum vento é favorável.

SER FELIZ POR LEI

António Mesquita



"Compete-nos submeter ao jugo benéfico da razão todos os seres desconhecidos, habitantes de outros planetas, que se encontram, talvez, ainda no estado selvagem da liberdade. Se eles não compreenderem que nós lhes trazemos a felicidade matemática e exacta, o nosso dever é forçá-los a serem felizes. Mas antes de todas as armas, empregaremos a do Verbo."

(Yevgueni Zamyatine. "Entre Nous")


Zamyatine tentou publicar esta novela em 1921, mas foi impedido pelas autoridades soviéticas, no que terá sido, da parte destas, o  primeiro acto de censura literária. A obra foi divulgada no Ocidente e circulou clandestinamente na URSS.

Lenine vivia ainda e a Revolução ia apenas no seu quarto ano. Este contexto explicará, talvez, que a sátira de Zamyatine tivesse sido inspirada por uma concepção filosófica da liberdade de criação que o novo poder não tolerava e, por outro lado,  a benevolência com que foi tratado, em 1931, por Staline que, por intercessão de Gorki, autorizou o seu pedido de exílio.

A felicidade dos outros, mesmo pela força, é um traço distintivo do bolchevismo original incarnado por uma elite culta que trouxe, enfim, uma solução à paralisia e à mortificação desses heróis de Tchekov imbuídos de idealismo, mas conscientes de terem chegado "ao fim do caminho".

Conheci, em tempos de maior generosidade, pessoas que ainda pensavam assim.

O génio do escritor russo é tornar essa pretensão ridícula ao querer exportar  o "iluminismo" da razão para fora do nosso planeta, como numa cruzada espacial.

Porque é bem verdade que querer impor uma ideia de felicidade "racional" não é muito diferente de querer "salvar os infiéis" de si mesmos e do seu afastamento do "verdadeiro Deus".
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